Por Regis Moraes

No dia 24 de julho de 2015 morreu Vito Giannotti, militante e amigo. Vito é um cara difícil de definir. Acho que sua energia criadora tinha três fontes. A primeira fonte era o cristianismo revolucionário, que encarnara desde jovem, quando foi para a Galiléia, trabalhar como pescador. Essa inspiração jamais o abandonou, nem quando gritava suas blasfêmias. Como dizia o poema de Antonio Machado, o Cristo do Vito não era aquele que sofria na cruz, mas aquele que andava sobre o mar. A segunda fonte era o comunismo – aquilo que admirava em Lenin, Trostky, Rosa Luxemburgo e, claro, Gramsci. Esses estavam sempre presentes na obsessão com que falava do “jornal para toda a Rússia”, da luta pela hegemonia. E o comunismo das revoluções, da Comuna, dos soviets, da insurreição cubana. A terceira fonte era o anarquismo, mais sentimental do que doutrinário, a aversão a ideias estabelecidas e a revolta contra a rigidez burocrática. O anarquismo das suas blasfêmias.

Vito e sua companheira, de vida e luta, Claudia Santiago

Conheci Vito em 1971. Meu grupo político, que optara pela luta armada, tinha sido destroçado, como boa parte da esquerda. Eu me reunia sistematicamente com um grupo de trabalhadores de Osasco, a cidade industrial da Grande São Paulo. Procurávamos entender a situação e imaginar o que fazer. Muitos deles eram militantes de grupos católicos de esquerda – Juventude Operária Católica (JOC), Ação Católica Operária (ACO), Frente Nacional do Trabalho. Vito apareceu nos convidando – era quase uma convocação – para uma empreitada maluca. A Oposição Sindical Metalúrgica, também muito atingida pela repressão, juntava forças para formar uma chapa e disputar a direção do sindicato, dominada por uma gangue de pelegos da ditadura. Lá fomos nós. Meses de panfletagens nas madrugadas. O engraçado da estória era que ele morava na Vila Leopoldina, então um bairro industrial de São Paulo. E eu morava a quatro ou cinco quarteirões da casa dele. Mas nós não sabíamos o endereço um do outro. Era assim que a gente era forçado a viver.

Foi uma campanha dura. O governo Médici não tinha a seu lado apenas a polícia, que não era de brincadeira. Tinha, devemos reconhecer, um apoio declarado ou silencioso das classes médias e um apoio ativo do empresariado, que inclusive financiava grupos de tortura, a polícia paralela da Operação Bandeirantes. E mesmo na classe operária era difícil encontrar resistência. Afinal, depois de anos de recessão e desemprego, não faltava emprego. Apesar do arrocho, dos acidentes, das condições degradantes de trabalho, com a ajuda da hora extra dava para comer, vestir e até comprar um rádio de pilha… Depois de anos do inferno do desemprego, a classe operária quase chegava ao paraíso. Em várias de nossas panfletagens, tínhamos medo da polícia, mas também tínhamos medo da reação dos trabalhadores – que muitas vezes nos olhavam com receio e mesmo hostilidade. Afinal, pegar um panfleto “subversivo” já era mal sinal. Sorrir ou falar com um dos “agitadores”, pior ainda. Esses eram os tempos. Cada tempo tem sua forma de escuridão, a nossa era essa. Era assim que a gente era forçado a viver.

Essa campanha foi o começo de muitas e muitas aventuras que tive o privilégio de compartilhar com o Vito. Ele viria a se transformar em um grande organizador, mas principalmente, em um grande militante da difusão, da educação política, da comunicação. Fizemos juntos muitos e muitos jornais sindicais. Muitas e muitas aventuras compartilhadas. A última foi o Núcleo Piratininga de Comunicação, já no Rio de Janeiro, para onde ele se mudou, quando São Paulo se havia praticamente fechado a militantes metalúrgicos como ele. Para Vito, a lista negra não era uma metáfora.

Nos últimos vinte anos, o NPC, naquele canto da Cinelândia, se transformou em um fomentador de rebeldia e conhecimento Brasil afora. Vito e sua incansável “gata”, Cláudia Santiago, comandavam essa fábrica de mentes rebeldes. Ao longo do tempo, foram aglutinando em torno deles uma porção de “pivetes”, como chamavam carinhosamente a garotada do NPC (alguns nem tão garotos, claro). E aí se desenvolveu, mais plenamente, o perfil complexo e completo do Vito. Não era apenas o operário fabril que figurava na sua galeria. Em todo grupo humano que sofria discriminação, opressão, exploração, ali estavam o olhar e a palavra de Vito e Cláudia. Vito costumava dizer que ao filho do pescador bastava uma pedra para descansar a cabeça. Mas ele e Cláudia nunca descansavam. Favelas, movimento negro, camponeses sem terra, mulheres, minorias perseguidas – todas mereciam atenção e empenho. Por isso, hoje, se você perguntar para onde o Vito foi, depois que morreu, tem onde procurar: ali onde houver um grupo de perseguidos e explorados, ali está ele, estimulando para a luta mas, também, dando uma palavra carinhosa para aquele que tem medo, duvida e vacila.

Como eu disse, Vito reunia aquelas três fontes de energia e conhecimento – o cristianismo, o comunismo e o anarquismo. Uma síntese estranha, difícil, delicada, mas compreensível para quem, como ele, havia lido a frase “a religião é um ópio do povo” sem deixar a parte seguinte, frequentemente esquecida: “é o grito do espírito em um mundo sem espírito”. Essa era a sua forma de religião. Assino e reconheço a firma.

Perdemos um companheiros, perdi um amigo querido. Mas todos nós ganhamos com ele, ficamos um pouco melhores com o que aprendemos de sua vida. E isso é um tesouro incalculável.

Reginaldo Carmelo de Moraes é professor de Ciência Política da Unicamp e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos dos Estados Unidos. Integra o Grupo de Conjuntura da Fundação Perseu Abramo

Aos que vão nascer
Bertold Brecht, tradução Geir Campos

I
Realmente, eu vivo num tempo sombrio.
A inocente palavra é um despropósito. Uma fronte sem ruga
denota insensibilidade. Quem está rindo
é só porque não recebeu ainda
a notícia terrível.

Que tempo é este em que
uma conversa sobre árvores chega a ser falta,
pois implica em silenciar sobre tantos crimes?
Esse que vai cruzando a rua, calmamente,
então já não está ao alcance dos amigos
necessitados?

É verdade: ainda ganho o meu sustento.
Porém, acreditai-me: é puro acaso. Nada
do que faço me dá direito a isso, de comer a fartar-me.
Por acaso me poupam. (Se minha sorte acaba,
estou perdido.)

Dizem-me: — Vai comendo e vai bebendo! Alegra-te
com o que tens!
Mas como hei de comer e beber, se
O que eu como é tirado a quem tem fome, e
meu copo água falta a quem tem sede?
contudo eu como e bebo.

Eu gostaria bem de ser um sábio.
Nos velhos livros consta o que é sabedoria:
manter-se longe das lidas do mundo e o tempo breve
deixar correr sem medo.
Também saber passar sem violência,
pagar o mal com o bem,
os próprios desejos não realizar e sim esquecer,
conta-se como sabedoria.
Não posso nada disso:
realmente, eu vivo num tempo sombrio!

II
As cidades cheguei em tempo de desordem,
com a fome imperando.
Junto aos homens cheguei em tempo
de tumulto
e me rebelei com eles.
Assim passou-se o tempo
que sobre a terra me foi concedido.

Minha comida mastiguei entre refregas.
Para dormir deitei-me entre assassinos.
O amor eu exercia sem cuidado
e olhava sem paciência a natureza.
Assim passou-se o tempo
que sobre a terra me foi concedido.

As ruas do meu tempo iam dar no atoleiro.
A fala denunciava-me ao carrasco.
Bem pouco podia eu, mas os mandões
sem mim sentiam-se mais garantidos, eu esperava.
Assim passou-se o tempo
que sobre a terra me foi concedido.

Minguadas eram as forças. E a meta
ficava a grande distância;
claramente visível, conquanto para mim
difícil de alcançar.
Assim passou-se o tempo
que sobre a terra me foi concedido.

III
Vós, que vireis na crista da maré
em que nos afogamos,
pensai,
quando falardes em nossas fraquezas,
também no tempo sombrio
a que escapastes.

Vínhamos nós então mudando de país mais do que de sapatos,
em meio às lutas de classes, desesperados,
enquanto apenas injustiça havia e revolta nenhuma.

E entretanto sabíamos:
também o ódio à baixeza
endurece as feições,
também a raiva contra a injustiça
torna mais rouca a voz. Ah, e nós,
que pretendíamos preparar o terreno para a amizade,
nem bons amigos nós mesmos pudemos ser.
Mas vós, quando chegar a ocasião
de ser o homem um parceiro para o homem,
pensai em nós
com simpatia.

Saiba mais
– Vito Giannotti, uma vida dedicada a combater a exploração

– “Comunicação dos Trabalhadores e Hegemonia”, de Giannotti, é lançado no RJ