A raiva que se sente “delas” e a luta que fazemos: a chacina misógina de Campinas
Na madrugada da virada do ano de 2017, Sidnei Araújo invadiu uma casa no interior de Campinas onde acontecia uma festa de réveillon. Matou a ex-esposa, o filho e mais dez pessoas, entre membros da família, amigos e amigas. O assassino se matou e deixou uma carta amplamente divulgada pela grande imprensa. O documento atribuía a culpa da violência brutal que o homem cometera, à ex-esposa, Isamara Fillier. Nas suas próprias palavras, matara pelo “direito de ser pai”; direito esse supostamente cassado pela ex-esposa e pela justiça brasileira. A indignação do matador em larga escala apoiou-se também na tragédia política que assolou o Brasil e apeou uma mulher, legitimamente eleita, do poder. Para ele, as leis (principalmente, a lei Maria da Penha, de 2006), as normas e o Estado existem para restringir a liberdade do cidadão em oprimir e ditar as regras que eles bem entendam aplicar.
Além da tristeza diante da tragédia, os sentimentos que a chacina despertou também denotam formas diferentes de entender as relações de poder entre mulheres e homens na sociedade. Dito maluco, portador de transtornos psicológicos, ou ainda, um homem sem informação suficiente para evitar a pulsão de matar mulheres, o assassino foi tratado de diferentes formas nas abordagens do triste ocorrido. Evidente e inevitável é a raiva “delas” que justificou seus disparos múltiplos; nas palavras dele, “toda mulher tem medo de morrer nova, ela [a ex-esposa] irá por minhas mãos”. Não se pode deixar de lado, ignorar ou passar por cima da misoginia expressa nas palavras e no feito do atentado. Misoginia, no dicionário, é a antipatia, a aversão mórbida às mulheres. Essa aversão, se manifesta com frequência na sociedade e no cotidiano das pessoas, organiza as relações sociais sustenta o patriarcado, sendo a chacina de Campinas uma de suas manifestações mais cruéis.
Orientadas também por essa aversão, as leis brasileiras só reconheceram a responsabilidade legal das mulheres sobre seus filhos e filhas em 1934. As leis de 1890, algumas delas em vigor até 1934, concediam o pátrio poder exclusivamente ao homem e o cedia às mulheres somente em caso de viuvez. Tendo isso em vista, é necessário assinalar que o poder público, antes mesmo de reconhecer a autoridade legal advinda da maternidade, considerava fortemente legislar sobre o desempenho dos cuidados das crianças e sobre a responsabilidade delas pela reprodução da vida, porém, como sujeitas de direitos, a prerrogativa da maternidade era precedida pela autonomia das mulheres nas tomadas de decisão. Apenas em 1943, o Estado passava a aceitar que a tutela legal de uma criança pudesse ser exercida exclusivamente por uma mãe. Não há registros sobre mulheres que desencadearam chacinas pelo direito de serem mães. As leis e as decisões judiciais, apenas recentemente, passaram a envolver mais os interesses de mulheres e crianças. Não sem luta, é claro.
Leis e decisões judiciais se transformaram, em alguma medida, para enfrentar a violência contra as mulheres com a aprovação da Lei Maria da Penha, em 2006. A vigência dessa lei possibilitou que Isamara Fillier registrasse cinco boletins de ocorrência denunciando aquele que logo se tornaria seu assassino. Portanto, havia um histórico de violência disponível ao poder público. Mesmo assim, a despeito de ter cumprido as exigências da lei, não se impediu a chacina de Campinas. O que prejudica a aplicação integral da lei é, também, a misoginia, a raiva “delas”; a dificuldade do poder público e da sociedade em aceitarem a denúncia das mulheres sem rodeios, sem culpar a própria vítima – a dificuldade em reconhecer a autonomia delas.
O crime de Campinas teve alto grau de planejamento e foi anunciado para amigos em forma de cartas e áudios. Em outras e tristes palavras: a chacina poderia ter sido evitada. Não reconhecer a misoginia, mata. E mata em larga escala.
A luta que fazemos tem por objetivo extinguir a misoginia, a “raiva” delas. Tem o fim de, por meio da auto-organização de mulheres, obter a nossa autonomia em decidir pelas nossas vidas. Nossa luta é pela ideia radical de que as mulheres são gente. E que são sujeitas de direitos. Considerar a existência de identidades de gênero e o discurso do patriarcado é também pesar que a vida das mulheres está em constante ameaça por um sistema de relações sociais que nos hierarquiza, nos violenta e nos assassina por sermos mulheres. A brutalidade da chacina de Campinas é um atentado contra todas as mulheres. E por isso seguiremos em marcha, até que todas sejamos livres.
Em marcha estaremos no ato Nenhuma a Menos – Campinas que vai acontecer no dia 05 de janeiro de 2017, às 17 horas, no Largo do Rosário.
Glaucia Fraccaro e Fabiana Oliveira são militantes da Marcha Mundial das Mulheres de Campinas (SP)