Dia da consciência negra e os novos ventos democráticos
“O racismo provoca a desumanização da pessoa em função do seu pertencimento racial, e em consequência disso há a desumanização da vida”, ensinou Luiza Bairros
Grupo Técnico de Igualdade Racial da Transição de Governo Lula
Este é um Dia Nacional da Consciência Negra diferente para o nosso país. Depois do Golpe de 2016 e com a ascensão da extrema direita ao poder, representada pelo desgoverno Bolsonaro, o Brasil e a população negra respiram ares de volta à democracia. Nesses anos de desgoverno, o povo brasileiro marginalizado que mais precisa de um Estado forte — a população pobre, negra, LGBTQIA+, as mulheres, os indígenas, os quilombolas e demais povos tradicionais, as pessoas com deficiência, as crianças e a juventude — sofreu ainda mais com as mortes que poderiam ter sido evitadas durante a pandemia da Covid-19, com o desemprego, a violência e com o retorno do Brasil ao Mapa da Fome.
Durante toda a sua trajetória histórica e política, a população negra organizada nunca desistiu de lutar pela democracia. E, nesta luta, jamais deixou de incluir a pauta das mulheres, dos LGBTQIA+, da pobreza, do racismo ambiental, do encarceramento em massa da população negra e tantas outras. O Movimento Negro, principal sujeito político e protagonista dessa luta, tem reeducado o Brasil, em especial, o campo progressista, na compreensão de que a luta antirracista aprimora a democracia. Afinal, a democracia não é perfeita e por isso pede e merece aprimoramentos. Ela se confessa imperfeita. Em regimes autoritários, no entanto, não existe a confissão da imperfeição. Existe arrogância e desrespeito.
Não basta, porém, apenas recuperar a nossa democracia tão atacada pelas forças reacionárias que subverteram a ordem e tentaram transformar o país em um espaço de ódio e intolerância. Precisamos recuperar a nossa democracia de forma mais qualificada. Por isso, ela precisa ter como base a igualdade social, racial e de gênero, com justiça social e retorno da dignidade da população brasileira. Para além disto, a democracia precisa ser antirracista! Estamos em um momento ímpar da construção do novo governo: o trabalho do gabinete de transição. Muito aprendemos nesses últimos anos sobre o quanto o combate ao racismo é urgente e que uma das formas de o realizar é por meio das políticas públicas. A recriação do Ministério da Igualdade Racial, compromisso de campanha do presidente Lula, se materializa na construção do grupo técnico com tal objetivo. Trata-se de uma ação política emancipatória.
Os ventos da emancipação social e racial nesse momento político de construção de diagnóstico do país e indicação de pontos a serem considerados pelos futuros ministros e ministras são uma tarefa relevante da transição. Sabemos que, hoje, no que se refere ao antirracismo, aprendemos e continuamos aprendendo muito mais com o Movimento Negro sobre a importância da igualdade racial como política transversal.
Dentre os aprendizados construídos pela Frente Brasil da Esperança nós, do Grupo Técnico de Igualdade Racial — neste histórico 20 de novembro de 2022, que faz parte do momento de retomada da democracia com participação social e compromisso com a reconstrução e transformação democrática do Estado — gostaríamos de deixar algumas importantes indagações e desafios para cada grupo temático e para a coordenação da transição. São elas:
Se há acordo de que o racismo é um fenômeno estrutural e que nos últimos anos ele recrudesceu em nosso país, como podemos construir políticas públicas antirracistas para além daquelas já previstas e que serão executadas na recriação do Ministério da Igualdade Racial?
Avançar em uma democracia antirracista significa que cada área da transição de governo e todo e qualquer setor governamental indaguem e olhem para si mesmos e para a situação de desigualdade racial e social existentes no Brasil e insiram o combate ao racismo nas políticas que serão formuladas pelos ministérios que representam. Se negros e negras somam 75% entre os mais pobres, como aponta o IBGE, toda e qualquer política de combate à pobreza e à fome terá de ser, obrigatoriamente, antirracista.
Os dados sobre as desigualdades raciais já existem. O nosso desafio é avançar dos dados para a política que combata o perverso fenômeno do racismo que os origina. É implementar e materializar a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação e Formas Correlatas de Intolerância, a Convenção 111 da OIT, a Constituição Federal e o Estatuto da Igualdade Racial.
Acreditamos que é possível porque o povo negro é sinônimo de resistência e de esperança. A população negra brasileira se apoia na esperança no sentido de Paulo Freire, ou seja, do esperançar, do agir no presente para torná-lo digno e para pavimentar um futuro melhor. Uma esperança que se embasa ainda na garra e na inteligência estratégica de Dandara e Zumbi na luta em e por Palmares.
Cada 20 de novembro é tempo de reafirmar que a luta antirracista será sempre democrática, pois superar o racismo nos liberta das amarras do ódio e da ignorância. Liberta a todos nós, negros e não negros. E sinaliza para a possibilidade da igualdade com equidade. E é justamente esse tipo de sociedade de que nós precisamos na reconstrução e transformação democráticas. Devemos seguir em nossos trabalhos com os ensinamentos de Nelson Mandela, que foi capaz de unir brancos e negros na luta contra o apartheid na África do Sul: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar”. •
Integram o GT de Igualdade Racial: Douglas Belchior, Givânia Maria da Silva, Iêda Leal de Souza, Janice Ferreira da Silva (Preta Ferreira), Martvs das Chagas, Nilma Lino Gomes, Thiago Thobias e Yuri Santos Jesus da Silva.