Primeira edição da Jornada de Territorialização promoveu diálogo entre lideranças locais e jovens produtores de cultura do município a partir de perspectivas periféricas

Rose Silva, para a revista Reconexão Periferias

Foto: Sergio Dias

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“O que é cultura e território para você?”: com essa provocação foi iniciada a roda de conversa da primeira Jornada de Territorialização 2024, realizada no sábado (13) pela Fundação Perseu Abramo a partir do projeto Reconexão Periferias, em parceria com a Fundação Friedrich Ebert Brasil, o Coletivo Quilombação e o Diretório Municipal do Partido dos Trabalhadores de Taboão da Serra (SP). 

O evento, que teve a participação de lideranças políticas locais, movimentos sociais e estudantes, debateu o vínculo entre cultura, violência e territórios periféricos com o objetivo refletir sobre um projeto político emancipatório do ponto de vista humano e cidadão. 

Participaram da abertura o integrante do diretório estadual do PT-SP Irineu Casemiro, o presidente do PT de Taboão da Serra, Maurício Lourenço, e o coordenador do projeto Reconexão Periferias, Paulo Ramos. Na composição da mesa, o mestre em gestão pública Danilo Benedito, como mediador, o professor da USP Dennis de Oliveira, a agrônoma e professora do Instituto Federal Vivian Delfino, e o rapper Gaspar Z’África, todos nascidos no Taboão. E ainda as pesquisadoras do projeto Sofia Toledo e Victoria Braga e o integrante da Coordenação de Entidades Negras (Conen) Rafael Pinto.

“Macarrão”, uma das lideranças que participaram do evento, disse que a cultura é uma forma do ser humano pertencer à sociedade, de acordo com o lugar onde vive. “O que vejo hoje em dia é uma violência surreal, mas as pessoas não conseguem assimilar que essa violência já é parte da cultura do povo brasileiro. É normal hoje em dia ver alguém ser preso sem motivo, espancado, agredido, humilhado. A pessoa começa a acreditar que isso faz parte”.

O estudante Caio Vitor do Santos, 18 anos, nascido e criado no Taboão, acredita que a cultura seja a representatividade de um povo. “É aquilo que nós somos, seja pela linguagem, pela crença, por aquilo que a pessoa faz. E ainda um movimento que dá voz às minorias. Sou poeta e escritor, em apoio à cultura negra, frequento slam e vejo isso como uma forma de resistência, mostrando que somos parte da sociedade. Algo que sinto muita falta é de conhecer a nossa história, porque por mais que estejamos em um mesmo país somos povos diferentes. A gente não entende os diversos povos, culturas e religiões.  Acredito que a falta desse conhecimento é que gera ignorância e preconceito”, diz.

Taboão da Serra é vizinho dos bairros Campo Limpo e Capão Redondo, com os quais compartilha códigos, linguagem e valores das periferias da região Sul paulistana. É também um dos municípios com grandes carências de acesso à saúde, educação de qualidade e espaços culturais, além de um dos locais mais violentos da Grande São Paulo, o que leva sua população a viver em estado de insegurança permanente. Ao mesmo tempo, se mostra como um centro de arte e criatividade, com talentos que surgem dos slam, batalhas de rap, sambadas de coco e outros polos de resistência.

A pesquisadora Victoria Braga falou sobre a cultura como ferramenta política. “Quantos grupos culturais e artistas usam a arte para posicionar-se e formar pessoas politicamente, com as mais diversas linguagens?”, destacou. Ela entende a cultura como instrumento de construção de um horizonte mais democrático e inclusivo.

“Sempre nos incomodou um pouco a ideia de que a periferia é puramente geográfica. Para nós, é uma categoria que unifica grupos, pessoas e territórios muito diferentes entre si mas que se aproximam não só pela distância geográfica dos centros e falta de acesso a serviços, mas principalmente pela exclusão dos espaços de poder. As periferias são povos de comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, ocupações no centro da cidade, favelas, população em situação de rua. É vulnerabilidade, mas também muita potência, porque esse entendimento de que as dificuldades são compartilhadas e a luta é conjunta é capaz de unificar todos esses grupos para lutar por representação política e direitos sociais”, explica.

Sofia Toledo, que integra o projeto Reconexão Periferias, disse que somos um país africano e indígena que se pensa branco, mesmo tendo todos os elementos culturais com essas influências, ou seja, a comida, o jeito de falar, as danças. E destacou que a indústria cultural pega todos os elementos da nossa forma de viver e ganha em cima disso. “É impossível pensar a cultura do nosso país desatrelada do racismo e do patriarcado. Enquanto o funk é um dos ritmos mais consumidos no Spotify e um monte de jovens brancos ouve nas universidades e nas festas, há casos como o massacre de Paraisópolis, com nove jovens assassinados em uma única madrugada. A cada vinte minutos uma mulher é assassinada. E o Brasil é o país que mais mata pessoas trans. Ao mesmo tempo, a pornografia de pessoas trans é a mais consumida por aqui. É importante pensar sobre o que isso diz sobre nossa cultura”, afirma. 


A professora Vivian Delfino propôs uma reflexão sobre o capital se apossar de nossa cultura e transformá-la em produto, quando, por exemplo, retira um artista da periferia e torna seus shows inacessíveis para a comunidade de onde saiu. “Você tem aí uma apropriação do que se produz no território periférico, indígena, quilombola”. Para Delfino, na cultura existe uma disputa de poder para definir quem vai viver e quem vai morrer. “Nos anos 1990, quando eu tinha 15 anos, fui fazer cursinho, eu tinha vergonha de dizer que morava aqui. É um território que produz cultura, sim, mas é desvalorizado por um estereótipo das ausências que não é culpa nossa: aqui é violento, não tem escola boa, não tem saúde. E tudo o que fazemos como construção nossa é apagado”, diz.

O rapper Gaspar Z’África lembrou que neste ano a escola de samba Vai-Vai representou a história do hip hop, não ganhou o carnaval e ainda foi perseguida. “Isso mostra como as culturas periféricas, dos povos africanos e originários, são banidas e perseguidas ao longo dos séculos até os dias de hoje. Estou aqui hoje porque quero ver a mudança. Desde moleque são os mesmos, os hereditários, e eu acredito muito nesta nova geração que está vindo. Talvez a gente transforme de vez a política desta cidade”, pontua.

E afirma que, quando se pensa a partir da visão colonial, o Taboão da Serra é visto como perigoso, mas os maiores talentos, moleques bons de samba, de bola, de rap, estão lá. “O sistema colonial não tem criativos. A criatividade vem daqui eles pegam e potencializam. Mas o que move a transformação é a quebrada. Não consigo pensar em viver em outro território que não seja minha quebrada. Com o rap, conheci mais de 15 países, já tive oportunidade de morar em outros países, mas não consegui ficar. Cabe a nós, nativos, reconhecer esse território como espaço de transformação para todos e não apenas para alguns”.