Primeira brasileira a conquistar ouro no vôlei de praia, a jogadora opina sobre o crescimento no número de atletas mulheres na delegação de Paris 2024

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Carioca, nascida nos anos 60, Jaqueline Silva pode ser encontrada atualmente nas praias do Rio de Janeiro treinando suas turmas na modalidade que a colocou nas páginas da história do esporte brasileiro: o vôlei de praia. Em 1996, a atleta foi a primeira mulher brasileira a ganhar uma medalha olímpica, junto com a também carioca Sandra Pires, com quem formou dupla nos Jogos de Atlanta naquele ano, o primeiro do vôlei de praia enquanto modalidade olímpica.

Atleta desde a adolescência, Jaqueline começou a carreira nas quadras, onde participou de diversos torneios importantes. Na década de 80, fez sucesso jogando nos Estados Unidos, onde passou a ser chamada de “Jackie, a rainha das praias” e a ser reconhecida como referência no esporte, que despontava como sucesso, atraindo, cada vez mais, público. 

Nesta edição dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, uma novidade. Pela primeira vez, o número de atletas mulheres ultrapassou a quantidade de homens na delegação brasileira. São 276 atletas no total, competindo em 39 modalidades diferentes, com 153 representantes do sexo feminino – 55% (para efeito de comparação, o índice foi de 47% na última edição, em Tóquio).

Jaqueline comemora a ampliação da participação feminina e lembra que o assunto era tabu no passado. A jogadora falou sobre a superação das mulheres no esporte. Confira: 

Como foi o seu início no esporte? O que te atraiu no vôlei?

Comecei a jogar vôlei desde pequena, na praia, mas era uma brincadeira. Acho que é como o esporte deveria começar para todo mundo, brincando de maneira lúdica mesmo, é diferente de hoje em dia quando o esporte começa já na escolinha, antigamente era uma brincadeira de rua, brincadeira de praia com os amiguinhos. Mais tarde comecei a jogar vôlei na escola e da escola eu fui para o clube e, depois, no clube comecei a carreira. Era outro processo, hoje em dia as coisas são diferentes. 

Você e Sandra Pires, enquanto dupla, se tornaram as primeiras brasileiras a ganhar uma medalha olímpica. Como esse assunto era tratado nos anos 90 dentro do COB [Comitê Olímpico Brasileiro]? 

Não, nada disso era debatido. Hoje é muito mais fácil conversar sobre isso e até facilitar para que isso aconteça, né? A entrada de mulheres, um maior número de atletas, número de treinadoras. Esse espaço que a mulher pode ocupar para além dos atletas ainda precisa ganhar mais força, existem poucas treinadoras, dirigentes, diretoras, tem que existir mais esse tipo de espaço. Existe um bloqueio, muito machismo. Para chegar a esses espaços não costuma ser tão simples, é preciso uma luta. 

Falar de participação feminina no universo geral do mundo do trabalho significa falar de sobrecarga, no esporte também? Como o assunto da sobrecarga aparece?

O grande potencial da mulher é justamente isso, mesmo sobrecarregada, ela continua dando o recado, marcando ali os pontos dela. Existem várias atletas que estão indo agora para as Olimpíadas com filhos, casamento, e que fazem todo o trabalho de serem atletas de alto rendimento e depois voltam para casa e ainda tem que, por exemplo, cuidar de crianças pequenas. Mas isso a mulher faz muito bem em todos os setores, né? É a prova do tamanho da força dela, do quanto ela entrega o trabalho que ela tem que fazer. Talvez o mais importante seja o reconhecimento disso tudo enquanto valor.  Inclusive, acho que as chances do Brasil ir melhor nessa Olimpíada mais a partir das mulheres do que dos homens são grandes. O brasileiro está precisando entender o direito da mulher de se sobressair. E ela não se sobressai só porque ela quer, mas sim porque ela é exigida, e dá conta daquilo que ela é exigida. Então, nesse lugar vai ser muito bom, até porque, no nosso país, as mulheres passam por situações muito ruins, é um país que mata, assassina as mulheres. Todas as vezes que as mulheres são assassinadas é porque elas fizeram alguma coisa a mais ou elas não quiseram fazer determinada coisa, quiseram mudar alguma situação, então, as mulheres são assassinadas por terem vontade própria. 

Como uma maior presença das mulheres nos Jogos Olímpicos favorece na prática a formação de novas atletas?

Toda vez que acontece uma grande exposição do esporte em grandes eventos, como as Olimpíadas, por exemplo, e a gente vê apresentações de boxe feminino, futebol feminino, coisas que estamos mais acostumadas a ver homens fazendo, eu acho que isso abre portas, é inspirador para sair daquele quadrado do feminino, é possível ter um universo ampliado ali. O esporte é influenciador nesse sentido, ele mexe com a cabeça das crianças, dos adolescentes, ele tem esse poder porque o esporte é uma linguagem. É uma linguagem de corpo, de luta, esporte de corpo a corpo, de força, de velocidade, cada um representa uma atitude. E uma criança se vê envolvida com aquele tipo de atitude que pode, de alguma forma, adiantar na vida dela. É sobre isso o espaço que as mulheres estão ganhando.

Você tem um projeto chamado Atletas Inteligentes, como surgiu a ideia? Conta um pouco sobre o funcionamento dele. 

Ele surgiu dentro de um trabalho que eu fiz, o primeiro projeto foi na praia de Ipanema, foi quando ele foi reconhecido pela Unesco. Eu conseguia ter uma mistura boa de classes sociais trabalhando no projeto e isso foi uma coisa que me despertou muito. Eu trabalho no Rio de Janeiro nas escolas públicas, e também trabalho com uma escola americana, e a gente vê muito essas separações dentro das grandes cidades, né? E aí você vê que qualquer dos dois lados, tanto do lado que tem mais condições quanto do lado que não tem tantas condições, mostram um complemento entre elas, isso chamou a atenção e por isso recebi o prêmio. Então, esse projeto acontece em escolas públicas. E é claro que, além do vôlei, eu passo o tempo todo tentando ver aonde é que essa inteligência desses atletas pode realmente vir através do esporte, de que forma que a gente pode fazer com que isso adiante a vida deles, né? Porque o esporte ele também tem essa linguagem de vida, só que é uma linguagem mais lúdica. Aquelas dificuldades da vida, de se comunicar, de ter iniciativas de conseguir ultrapassar dificuldades, isso é muito importante, é bem mais divertido você aprender isso no dia a dia, então é um pouco sobre isso.

E com relação às expectativas sobre o futuro do esporte femino? O que você vislumbra para as atletas? Como acha que o papel feminino será tratado daqui para frente?

Espero que o futuro seja cada vez mais no sentido de que elas se estabilizem dentro de um lugar de direito. Mas, eu acho que o mundo ainda vai mudar muito. Acho que outras discussões de gênero vão acontecer. A mulher vai conseguir superar tudo isso e outras questões vão aparecer, outros gêneros vão surgir, outras discussões. Eu acho que o esporte, uma Olimpíada vem para, não só bater recordes ou mostrar a superação dos atletas, mas as superações de vida, do social dos atletas, né? Existe ali uma necessidade de posicionamento dos atletas, por exemplo. Vamos entrar em uma Olimpíada agora com conflitos humanitários imensos, temos atletas sem bandeira, que vão competir sem poder representar o país porque foram expulsos. Então são problemas sociais que vão começar a surgir e que o Comitê Olímpico Internacional vai ter que levantar e começar a ter atitudes em relação a isso. Problemas sociais são, no meu ver, problemas de várias ordens e situações. Eu vejo que a mulher consegue ser mais sensível a isso porque somos sobreviventes, né? em diferentes áreas, no esporte, no jornalismo. Então, é muito legal ver esse crescimento de ocupação feminina, mas acho que muita coisa aí vai acontecer e vir à tona em cada Olimpíada.