PREFÁCIO – por Ignacy Sachs

As economias mistas público-privadas, caracterizadas por modelos diferentes de articulação entre as dimensões econômica, social e ambiental do desenvolvimento, constituem uma categoria central para a compreensão do funcionamento do mundo contemporâneo. Por muito tempo ainda, estamos condenados a viver em economias mistas público-privadas, divergindo com respeito às formas de articulação entre essas duas esferas da vida social.

O ensaio de Ladislau Dowbor propõe alternativas de desenvolvimento para a economia brasileira, que, pelo seu tamanho e dinamismo, há de influenciar o futuro das demais sociedades latino-americanas, africanas e asiáticas. Não resta dúvida de que os conceitos da economia mista público-privada, dos mecanismos de regulação e do planejamento democrático do desenvolvimento têm um futuro rico à sua frente, como demonstra de maneira tão persuasiva este livro, que busca armar os cidadãos com ferramentas indispensáveis à melhor compreensão e transformação do mundo em que vivemos.

 

INTRODUÇÃO – por Ladislaw Dowbor

Estamos acostumados a entender muito pouco de economia. O que é estranho, porque somos diariamente bombardeados com análises econômicas, com doutas explicações sobre por que o mercado “está nervoso”, sobre por que as coisas dão certo ou não, ou por que de repente nos encontramos sem emprego e sem renda. Mas na realidade não é tão complicado assim, se assumirmos como ponto de partida que o que interessa é a nossa qualidade de vida, passando com isso a ter como separar o joio do trigo, o que é objetivo real e o que é defesa demagógica de interesses particulares.

Os mecanismos econômicos, afinal, não são tão complicados assim. O que complica é que, segundo os interesses e a vontade de se apropriar de um pedaço maior do bolo, ouvimos explicações contraditórias para cada coisa que acontece. O banqueiro diz que precisa subir os juros para ganhar mais, pois isso permite que ele invista e dinamize a economia para o bem de todos. O trabalhador diz que precisa ganhar mais, pois isso estimula a demanda, o que por sua vez gera investimentos e dinamiza a economia para todos. Todos querem, evidentemente, o bem de todos, se possível justificando a apropriação do maior pedaço possível para si. Entra aqui, naturalmente, um pouco de julgamento de valor moral. Eu, francamente, acho mais legítimos os interesses dos trabalhadores do que dos banqueiros. Banco é atividade de meio, e os meios têm de se adequar aos fins, que é a vida digna de todas as famílias.

Muitos simplesmente desistem de entender, imaginam uma complexidade acima da sua compreensão. No entanto, trata-se do nosso dinheiro, da nossa sociedade, dos nossos empregos. Enquanto deixarmos a compreensão da economia para os especialistas, são os interesses deles, e dos que os empregam, que irão prevalecer. A democratização da economia e da própria compreensão do seu funcionamento é fundamental. Precisamos de muito mais gente que entenda como se pode realmente equilibrar as coisas. A mídia sem dúvida não ajuda e, curiosamente, ainda que a nossa vida dependa tanto do andamento da economia, nunca tivemos na escola uma só aula sobre os seus mecanismos. Nenhuma aula sobre como funciona, por exemplo, o dinheiro, esse poderoso estruturador da sociedade. A televisão atinge hoje 97% dos domicílios: seria tão difícil assim gerar uma sociedade mais informada, em vez de nos massacrar com bobagens e fundamentalismos ideológicos?

Este pequeno livro busca ajudar quem quer entender sem querer se tornar um comentarista. Não haverá neste texto nenhuma equação, nenhuma econometria. E tampouco haverá simplificações ideológicas. Iremos descrever aqui os desafios, ponto por ponto, apontando dificuldades e soluções. E como o texto completo está disponível na internet, com livre acesso, qualquer leitor poderá se manifestar, sugerir complementos e correções.

Este livro é muito pequeno se comparado com os tratados de economia que vemos nas estantes das livrarias. Não irá, portanto, ensinar tudo, mas sim os mecanismos básicos, que cada um poderá detalhar segundo as suas experiências e conhecimentos complementares. Todos nós temos o ponto de partida essencial, que é a vivência de como somos recompensados ou depenados segundo as circunstâncias. Portanto, temos a matéria-prima, e, ao vermos o quadro mais amplo, as coisas se encaixam e passam a fazer sentido. Sugiro uma leitura tranquila, passo a passo, e a releitura, pois aqui, mais que o detalhe, interessa a visão de conjunto.

A economia não é propriamente um “setor” de atividades, como educação ou agricultura, e sim uma dimensão de todas as nossas atividades. Tem dimensão econômica a latinha de cerveja que alguém joga na rua, e que outro terá de apanhar. Ou a escola que escolhemos para os nossos filhos, ou ainda a obesidade que se gera com certos tipos de comida. Quem limpa a rua terá de ser pago, da qualidade da escola depende a produtividade futura, a obesidade irá gerar custos na saúde. Fazemos economia o dia inteiro, ou até à noite, mesmo que a dimensão econômica frequentemente nos escape. A economia, nesse sentido, constitui um movimento que resulta do conjunto de iniciativas dos mais variados setores, e temos de ter uma noção da contribuição de cada um.

A economia está impregnada de ideologias, contaminada por preconceitos. Este ponto é importante e vai nos fazer entender, por exemplo, por que o motorista apressado tem ódio do corredor de ônibus, ou por que os acionistas de um grupo econômico que poderiam lucrar com um shopping ficam escandalizados que uma área verde sirva apenas como espaço gratuito de lazer. Mas a economia que funciona não se resolve no ódio, e sim na harmonização razoavelmente equilibrada dos diversos interesses.

Essa harmonização não significa uma abordagem neutra, pois enfrentamos aqui desequilíbrios antigos e novos, herdados e reproduzidos. Nos EUA, o salário de um administrador top de linha de uma instituição de especulação financeira é, aproximadamente, o mesmo que o de 17 mil professores de ensino primário (Russell Jacoby). Faz algum sentido? Nenhum sentido ético, pois o trabalho do professor é muito intenso, e nenhum sentido econômico, pois o professor multiplica conhecimentos, enquanto o especulador multiplica falências. No entanto, é o que prevalece, e o importante não é odiar o especulador – há inúmeros candidatos para ocupar o seu lugar –, e sim entender como o sistema se deforma e permite tais absurdos.

No plano social, temos de entender como o 1% dos mais ricos do planeta se tornaram donos de 50% das riquezas produzidas por toda a sociedade. Como podemos ter 800 milhões de pessoas que passam fome quando o mundo produz, apenas de grãos, mais de um quilo por pessoa por dia? Como, com tantas tecnologias, um terço da humanidade ainda cozinha com lenha, e 1,3 bilhão sequer têm acesso à eletricidade? Esperar ter paz social, política equilibrada e um mundo em segurança nessas condições não faz muito sentido. Gente reduzida ao desespero e reage de maneira desesperada: é simples assim.

No plano ambiental, podemos enfileirar um conjunto de tragédias que se avolumam, como o aquecimento global, o desmatamento, a perda de solo fértil, a ruptura das cadeias alimentares dos oceanos e outros processos acelerados de destruição, em que cada corporação busca arrancar o máximo para o seu proveito e o dos seus acionistas sem que ninguém consiga defender o bem comum. O relatório do WWF de 2014 mostra que em 40 anos, entre 1970 e 2010, destruímos 52% da fauna do planeta, com numerosas espécies já irremediavelmente extintas. Não ver o drama que se avoluma já não é questão de posicionamento político, mas de responsabilidade como ser humano.

No plano da organização econômica e financeira, chegamos ao absurdo de ter entre um terço e metade do valor do PIB mundial estocado em paraísos fiscais, fortunas que são aplicadas não em criar atividades econômicas, produzir coisas úteis, mas em gerar lucros especulativos. Como os lucros especulativos aumentam em ritmo muito superior ao do crescimento da economia real, temos aqui uma bola de neve e os mais ricos, que são os que jogam no mercado financeiro, aumentam a sua parte do bolo em ritmo crescente. E como nos paraísos fiscais não se paga impostos, ou apenas simbolicamente, geramos um processo completamente disfuncional, na linha do que tem sido chamado de financeirização da economia.

Neste tripé social, ambiental e econômico, basicamente estamos destruindo o planeta em proveito de uma minoria, sendo que essa minoria sequer consegue administrar os seus recursos para que tenhamos um desenvolvimento econômico que faça sentido. Esses recursos, na realidade, são necessários para financiar políticas sociais inclusivas capazes de assegurar vida digna à imensa massa de pobres, e a reconversão tecnológica e organizacional que permita assegurar uma produção que não destrua o planeta. Para isso, evidentemente, temos de rever as regras do jogo.

A análise do funcionamento da economia que aqui apresentamos tem um objetivo que não é necessariamente o crescimento do PIB, mas a reconversão necessária para um desenvolvimento equilibrado. Aliás, é interessante constatar que, com um PIB de mais de US$ 70 trilhões e 7,2 bilhões de habitantes, o que produzimos hoje em bens e serviços representa R$ 7 mil por mês para cada família de quatro pessoas.

Nosso problema não é produzir mais: é definir melhor o que produzir, para quem e com quais impactos para a sustentabilidade social e ambiental do planeta.

Neste pequeno livro, não visamos resolver todos os problemas, mas assegurar que o leitor tenha pontos de referência básicos para se situar. Fugindo às grandes generalizações, buscamos ir por partes, o que nos permitirá ver que não podemos buscar as mesmas formas de gestão para atividades tão distintas como a mineração, a educação ou a intermediação financeira, para dar alguns exemplos.

A economia moderna se tornou muito complexa para as grandes simplificações de outrora. De um lado havia os defensores do capitalismo, centrado na propriedade privada e regulado pela mão invisível do liberalismo empresarial, com a burguesia ditando os rumos em termos políticos. De outro lado, os defensores da economia estatizada, regulada  pelo planejamento central e com o controle político do proletariado.

Hoje temos de enfrentar a complexidade de uma economia mista e a busca de soluções menos lineares. Quando trabalhei no Ministério do Planejamento da Nicarágua, no tempo de Daniel Ortega, deparei-me com uma situação curiosa: os bens do ditador Somoza tinham sido estatizados; e foi desse modo que o governo herdou, entre outros, salões de beleza. O país será mais socialista porque o corte de cabelo é feito por um funcionário público?

Dilema semelhante encontrei na Polônia socialista, onde as tentativas de gestão pública da agricultura familiar ou da pequena produção de camisas e outros bens de consumo corrente travaram o desenvolvimento, enquanto as áreas de saúde, educação, cultura, geridas segundo interesses públicos, formaram a base da prosperidade moderna.

Em outros termos, além das simplificações, e levando em conta as enormes transformações das últimas décadas, temos de pensar com cabeça mais fria o que funciona melhor e com que sistemas de gestão. Voltando ao exemplo, a Polônia foi, segundo o Economist, o país que melhor sobreviveu à crise. Os bancos não tinham sido privatizados, e os recursos das poupanças da população continuaram a ser geridos sobretudo por cooperativas como “caixas de poupança”. Balcerowicz, um dos grandes economistas poloneses, disse ironicamente que a Polônia foi salva por seu atraso financeiro; aliás, com soluções muito parecidas com as das sparrkassen (bancos comunitários locais) municipais, que geram quase dois terços da poupança da Alemanha, financiando as necessidades reais de cada região em vez de aplicar no cassino financeiro.

Em outros termos, o que aqui buscamos é ver, setor por setor, o que funciona melhor, conscientes de que há coisas que funcionam melhor com mercado, outras com planejamento central, outras ainda com planejamento participativo, e assim por diante. Estamos frente ao desafio real de equilibrar, numa economia que se diversificou, mecanismos de regulação variados e frequentemente articulados, tendo como pano de fundo, ou objetivo maior, a construção de sistemas democráticos e equilibrados de gestão.

Eu, francamente, que sou de uma geração que, graças aos militares, teve de viajar bastante, enfrentei a montagem de sistemas econômicos durante sete anos em diversos países africanos, além de contribuições tão diversificadas como na Mongólia, na China, no Equador, na Suíça, na Polônia e em muitos outros. Isso me fez duvidar bastante dos grandes caminhos retos, das grandes propostas que tudo igualam. Gostemos ou não, temos de olhar os problemas de mais perto.

Como a economia não é uma atividade em si, mas uma dimensão de todas elas, antes de entendê-la temos de entender as próprias atividades. Trabalharemos aqui com quatro grandes áreas: produção material, infraestruturas, serviços de intermediação e políticas sociais. Para dar um exemplo, um produtor de melancia exerce o seu esforço numa unidade agrícola de produção, mas depende de infraestruturas de energia e transporte para atingir o mercado; também precisará de intermediários para o financiamento e a comercialização; e nenhuma dessas atividades funcionaria sem políticas sociais, como educação e saúde, para tornar as pessoas informadas e produtivas. Conforme o lugar onde “dói o calo”, as pessoas dizem que a grande solução está nas infraestruturas, outras dizem que é na educação, outras, ainda, que é na saúde… mas a realidade é que as quatro grandes áreas têm de funcionar de maneira equilibrada para que o conjunto funcione. A economia é um sistema de engrenagens articuladas.

Trecho extraído do livro: “O Pão nosso de cada dia – processos produtivos no Brasil”

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