Ano 1 – nº 03 – Maio 2016

UMA PONTE PARA O PASSADO NA POLÍTICA SOCIAL

O Programa Bolsa Família

O combate à situação de pobreza pelo poder público é ainda atualmente muito discutido e está longe de ser consenso, seja pelo caráter multidimensional e relativo da pobreza, seja pela diversidade de políticas já testadas no mundo, muitas das quais com pouco sucesso efetivo.

O Programa Bolsa Família (PBF) é uma exceção neste aspecto. Premiado nacional e internacionalmente, a Organização das Nações Unidas (ONU) o destaca como um “exemplo para o mundo” e como um dos principais responsáveis pelo aumento de 10% do IDH do país entre 2000 e 2010. Devido ao seu perfil multidimensional, impacta direta e positivamente indicadores de educação, saúde e padrão de vida. Responsável também por manter cerca de 36 milhões de pessoas fora da linha de extrema pobreza, o programa foi citado como referência pela ONU por “permitir que seu público alvo melhorasse no perfil de inserção no mercado de trabalho, redução de taxas de inatividade e de informalidade, aumento na proporção de contribuição para a previdência social, bem como aumento no salário médio de suas ocupações principais”, superando inclusive a preocupação de que transferências de dinheiro para pobres pudessem reduzir a taxa de emprego.

Apesar de 3,1 milhões de famílias já terem se desvinculado voluntariamente do programa, a ampla cobertura de famílias no perfil de pobreza por um tempo prolongado também é importante, pois a complexidade de superação desta situação por parte das famílias vai muito além da transferência de renda. Ela pode ser considerada condição sine qua non para que outras estratégias, como elevação de escolaridade, qualificação profissional, inserção no mercado de trabalho, aumento da autoestima, entre outras, tenham sucesso por meio de iniciativas individuais dos beneficiários ou de políticas públicas federativas, quando bem executadas na esfera municipal.

A proposta do governo interino

Por estes motivos, a atual proposta da gestão Temer, de atender pelo programa apenas os 5% mais pobres da população brasileira, compromete todo o esforço e sucesso que o programa obteve desde sua criação, em 2003. Em 2014, ano dos mais recentes microdados da PNAD, a melhor remunerada das 3,4 milhões de famílias neste perfil ganhou apenas R$ 389,00 de renda mensal. Esta média para o total de famílias foi de apenas R$ 176,00. O tamanho desta família é pouco superior a 3 pessoas, o que proporciona um rendimento de aproximadamente R$ 50,00 para cada membro, valor inferior aos R$ 91,161 que define a ONU como extrema pobreza.

A Justificativa do atual governo interino para esta mudança brusca na política social é a de que “a população acima dos 5% mais pobres está perfeitamente ‘conectada’ à economia local”. Independente do conceito entendido por ‘conectada’, é senso comum a dificuldade de inserção no mercado de trabalho e emancipação socioeconômica da população com renda pouco maior que a dos 5% mais pobres, bem como de outras faixas com rendimentos bem superiores ao destes. Outro equívoco em tais prováveis critérios é que se pretende não contabilizar como família pobre as que possuírem alguns utensílios domésticos em perfil e quantidade específicos, uma moradia não precária ou ainda alto nível de ensino.

Neste perfil existem muitas pessoas que tiveram há tempos um bom emprego, no setor industrial, por exemplo, conseguiram adquirir ou financiar sua casa e bens, e, hoje, ou não conseguem se recolocar no mercado, ou já estão aposentadas, tendo muitas vezes que sustentar sua família. Tal solução aparenta ser fruto de uma visão preconceituosa e retrógrada, segundo a qual o pobre tem de morar mal, ser analfabeto, desempregado, entre outros, ignorando as complexidades e perversidades do mercado de trabalho. Atualmente discute-se, mundo afora e por alguns intelectuais brasileiros, o conceito de nova exclusão social, segundo o qual muitas vezes a pessoa mora em residências de boa estrutura e possui alta escolaridade, mas não consegue se inserir no mercado de trabalho. Perfil este inclusive que merece um outro modelo de políticas públicas para que consiga não ficar inserido de forma marginal na sociedade.

A cobertura atual

Em 2014 havia cerca de 14,3 milhões de famílias em situação de pobreza pelas estatísticas do IBGE2. Em abril de 2016, o PBF atendia cerca de 13,9 milhões de famílias, uma cobertura de 97,3% da pobreza estimada.

A região Centro-Oeste é a que possui maior cobertura média da pobreza, 103,8%3 (717 mil beneficiários), seguida da região Nordeste, com 101,2% (7 milhões de beneficiários), região Norte com 99% (1,7 milhões de beneficiários), Sudeste com 91,9% (3,5 milhões de beneficiários) e Sul com 84,9% (918 mil beneficiários).

Gráfico 1. Atendimento do Programa Bolsa Família e nº de famílias em situação de pobreza
De acordo com o Gráfico 1, nota-se que os estados que se destacam em número de atendidos e maior cobertura da pobreza pelo PBF são: Mato Grosso do Sul, com 139.333 famílias beneficiárias e 133,3% de cobertura; Pernambuco, com 1.134.200 e 110,1%; Pará, com 915.780 e 102,7%; e Bahia, com 1.837.668 famílias beneficiárias PBF e 102,1% de cobertura da pobreza. Já os estados que se destacam com menor cobertura são Santa Catarina (72,8% e 124,6 mil famílias beneficiárias), Distrito Federal (72,9% e 80,6 mil), Rondônia (75,5% e 100 mil) e Espírito Santo (76,5% de cobertura e 183 mil famílias beneficiárias).

Gráfico 2. Futuro Atendimento do Programa Bolsa Família e nº de famílias em situação de pobreza
O impacto regional consequentemente seria muito grande. A região Centro-Oeste, que atualmente possui a maior cobertura nacional, passaria a ter a menor proporção de cobertura da pobreza do país, com apenas 20% das famílias no perfil atendidas, cerca de 137,7 mil famílias assistidas, seguida da região Norte, com 21,2% e 370 mil famílias, Sul com 21,8% e 236 mil, Sudeste com 22% e 843 mil famílias, e Nordeste, com 25,9% das famílias pobres atendidas, cerca de 1,8 milhões de famílias.

Alguns dos estados que seriam mais prejudicados em termos de proporção de atendimento ou menor quantidade de famílias assistidas são: Amapá (16,1% de cobertura e somente 9,5 mil famílias atendidas), Rio de Janeiro (16,3% e 133,3 mil famílias), Distrito Federal (18,2% e 20,1 mil famílias), e Paraná (19,3% e 86,3 mil famílias atendidas). Não existem estados os quais possam ser enquadrados como pouco prejudicados.

Mapa 1. Proporção de Famílias em situação de pobreza Futuramente não atendidas pelo PBF
Pelo olhar inverso, o mapa 1 permite uma visão mais abrangente, com as regiões Sudeste, Centro-Oeste e Norte, saltando aos olhos como as mais prejudicadas. Destacam-se, além dos acima citados, os estados de Roraima, Acre e Goiás, com mais de 80% de famílias em situação de pobreza não atendidas cada. Tocantins, Maranhão e Paraíba, apesar de serem os menos afetados, possuem uma situação muito próxima à dos demais, com futuras não coberturas da pobreza pelo PBF que variam de 71 a 72,7%.

Mapa 2. Quantidade de famílias em situação de pobreza futuramente não atendidas pelo PBF
Já o mapa 2 mostra a concentração das prováveis 10,9 milhões de famílias que não devem mais ser atendidas pelo PBF. Nota-se a figura de um semiarco no mapa do país ao longo de todo litoral e adentrando para a Amazônia, com destaques para Bahia (1,3 milhão de famílias não atendidas), São Paulo (1,1 milhão de famílias), Minas Gerais (1 milhão de famílias), Ceará (840 mil famílias) e Pará (700 mil famílias).

Se por estado da federação a fragilidade da futura estratégia se mostra pontualmente preocupante, é por grande região que os prováveis resultados demonstram a dimensão nacional que pode atingir. Apenas o Nordeste terá 5,1 milhões de famílias em situação de pobreza não atendidas. O Sudeste terá 3 milhões, o Norte 1,4 milhão, o Sul 850 mil e o Centro-Oeste 550 mil, completando o quadro da possível tragédia social que se avizinha.

Para além da fragilidade financeira

Além do agravamento da fragilidade financeira de tais famílias, outros indicadores também poderão ser afetados. No Boletim de Análise da Conjuntura nº 02 – FPA, de abril/2016, foram analisados e detalhados diversos indicadores socioeconômicos que apresentaram correlações com significância estatística com territórios possuidores de maiores proporções de atendimento do PBF, ou seja, que apontavam que quanto maior o atendimento do programa, melhores são os resultados nos seguintes indicadores:

– Redução da exclusão social no período censitário de 2000 a 2010 com coeficientes de Pearson de 0,083. Dos 4.226 municípios brasileiros que possuíam mais de 75% de famílias em situação de pobreza atendidas pelo programa, 91% apresentaram redução da exclusão social.
– Redução da pobreza no período de 2000 a 2010 com coeficiente de -0,194.
– Redução da desigualdade social, com o Índice de Gini diminuindo nas regiões onde havia maior concentração ou maior número de beneficiários, com coeficientes variando de 0,188 a 0,092, de acordo com a região do país.
– Elevação da escolaridade, com a correlação chegando a 0,119 na região Sudeste. A maior presença do jovem na escola também pode ser apontada como um fator preponderante na redução da violência, segundo o estudo “Indicadores Multidimensionais de Educação e Homicídios nos Territórios Focalizados pelo Pacto Nacional pela Redução de Homicídios” (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – Ipea/2016), a cada 1% a mais de jovens nas escolas, os homicídios caem 2%.
– Evolução da alfabetização, com um coeficiente de 0,189, principalmente nas regiões Sul, Sudeste e Norte do país.
– Aumento do emprego no setor de comércio e serviços. Entendido como consequência do desenvolvimento local gerado pela redistribuição de renda, no período de 2003 a 2013, apresentou correlação de 0,064, com destaque para as regiões Centro-Oeste e Sudeste.
– Maior quantidade de micro e pequenos estabelecimentos empregadores criados, com coeficiente de 0,079 para todo o país.
– Produto Interno Bruto (PIB). Maior variação positiva no valor adicionado do setor de comércio e serviços, com o coeficiente de Pearson de 0,28 para o país. Destaque para a região Sul (0,075).

Ainda na temática econômica, segundo o Ipea, a cada R$ 1,00 gasto com o Bolsa Família, R$ 1,78 é adicionado ao PIB. Isto ocorre porque a família pobre costuma gastar uma parcela maior de sua renda mensal do que outras classes econômicas. Em consequência, chega-se ao cálculo de que os 27,6 bilhões gastos em 2015 com transferência aos beneficiários gerou um incremento de 49,2 bilhões de reais no PIB nacional do mesmo ano. Enquanto, por exemplo, os EUA gastam 2% de seu PIB no que chamam de programas “focalizados”, o PBF custou, em 2015, ao Brasil, 0,46% do PIB e contribuiu com 0,83%. Com a redução de beneficiários proposta, esta contribuição será de apenas 0,2%, o que impactará, para um período de 12 meses, numa redução de 0,63% do PIB.

A adoção de políticas neoliberais, outrora já testadas sem sucesso na década de 90 no país e no mundo em diversos países e períodos torna-se um risco ainda maior para as políticas sociais já consolidadas e com efeitos benéficos comprovados à vida das pessoas que mais delas precisam e à economia do país. Será que, como disse Ana Fonseca em seu recente artigo Navalha na carne… dos pobres: ”uma tragédia se avizinha e voa rasante sobre as casas e as vidas de milhões de brasileiras e brasileiros”? Em breve saberemos.

Aspectos metodológicos

Para a mensuração da pobreza, optou-se trabalhar com os dados mais recentes disponíveis. Desta forma foram utilizados os microdados da Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicílio (Pnad) 2014 por se tratar de uma base de dados apropriada para levantar tais informações regionalizadas para o país, nos níveis territoriais grandes regiões e unidades da federação. Em consequência, alguns valores vão se diferenciar dos então expostos pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDS), que se baseiam no censo demográfico 2010, por conta da demanda de informações municipais.

Também foram utilizadas as informações dispostas na Matriz de Informação Social do MDS, com os dados de beneficiários e valores transferidos pelo PBF referentes ao mês de abril/2014, último disponível até a conclusão deste estudo.

Para estimar o provável futuro atendimento do Programa Bolsa Família foi utilizada a publicação “Travessia Social – Uma ponte para o futuro”, elaborada pela Fundação Ulysses Guimarães para o PMDB.