Por Daniel Santini, publicado originalmente em Fundação Rosa Luxemburgo.

O problema não é só o Trump, é o que ele representa. Para o embaixador brasileiro Celso Amorim, 74 anos, ao se analisar a eleição do bilionário Donald John Trump, de 70, para a presidência dos Estados Unidos, é preciso considerar não só o personagem – nas suas palavras, “sexista, racista, xenófobo” -, mas também o contexto. A vitória do candidato do Partido Republicano se deu com base em um discurso de ódio crescente, que tem ganhado força e pode resultar em conflitos graves. A análise foi feita durante o evento “A globalização do mal-estar”, promovido pela Fundação Rosa Luxemburgo em 1º de fevereiro de 2017, em São Paulo. A posse do sucessor de Barack Obama aconteceu em 20 de janeiro, com Trump assumindo como 45º presidente dos Estados Unidos. As primeiras medidas e posicionamentos tomados pelo governante foram o tema principal da apresentação de Amorim, que relaciona o trumpismo com um retrocesso nas políticas sociais e na democracia no mundo.

“A vitória do Trump é a mais eloquente por tudo que ele representa e simboliza. As pessoas falam muito do Trump, ele próprio, mas uma palavra pouco usada é o trumpismo. O que é preciso estudar não é o Trump, é o trumpismo. As pessoas falam que detestam, mas elas estão mesmerizadas pelo Trump. É claro que é um individuo, há uma dimensão individual importante, mas uma das coisas que me chocou, me impressionou negativamente, foi ver em uma dessas pesquisas de opinião que 49% dos entrevistados apoiam medidas contra imigração. Só 41% são contra”, afirmou, fazendo a ressalva de que desconhecia a metodologia e a precisão da pesquisa. O levantamento a que Amorim se refere é o realizado pela Reuters/Ipsos, uma enquete online em inglês que registrou respostas de 1.201 pessoas dos 50 Estados do país.

“Eu costumo dizer que o Trump é ruim, é muito ruim. Para os Estados Unidos, obviamente, para o povo americano. Para outros países, ele é ruim sobretudo pelo mau exemplo. Um sujeito que é sexista, racista, xenófobo, para falar de algumas características mais ou menos óbvias, consegue se eleger na maior – com aspas ou sem aspas – democracia do mundo. Não é de estranhar que isso vigore em outros países. O exemplo é lamentável”, argumenta o embaixador. “Há algo que ele simboliza, representa, e é algo muito perigoso. Não quero comparar com o que aconteceu no passado, mas é isso que tem que ver. A figura do Trump é ridicularizada, mas, ao mesmo tempo, é terrível porque ele é o presidente dos EUA e o que ele faz influencia o mundo todo”.

Nova ordem mundial

Diplomata de carreira, Celso Amorim foi ministro durante 12 dos 13 anos que o Partido dos Trabalhadores governou o Brasil. Assumiu em 2003, convidado pelo então recém-eleito presidente Luiz Inácio Lula da Silva para ser ministro das Relações Exteriores, cargo que ocupou até 2010. Nos oito anos à frente da política internacional, teve papel-chave em mudanças significativas na condução das diplomacia, incluindo a aproximação e negociação de alianças políticas e comerciais com países com os quais, até então, o Brasil tinha pouca relação. Sua atuação foi decisiva na configuração de blocos regionais, na valorização das tratativas e acordos entre países do Sul (política que ficou conhecida como Cooperação Sul-Sul) e nas políticas conjuntas dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), bloco que ajudou a formar. No governo de Dilma Rousseff, em 2011, foi convidado para ser ministro da Defesa, mas continuou influente em questões internacionais, trabalhando para consolidar cooperação militar e alianças de defesa com países vizinhos. Ficou no governo até o final de 2014.

Em uma nova ordem mundial, marcada não só pela eleição de Trump, mas também pela ascensão e fortalecimento de forças conservadoras ultranacionalistas em especial na Europa, Celso Amorim prevê a fragilização dos mecanismos institucionais internacionais criados para mediar a relação entre os países, incluindo aí as Nações Unidas e a Unesco. Lembra que já foram feitos anúncios de que recursos destinados a tais organizações seriam retirados e aponta os riscos de uma desregulamentação generalizada. Longe de adotar um discurso radical ou revolucionário, ele argumenta que é hora de equilíbrio e ponderação. Defende, por exemplo, a importância da manutenção da Organização Mundial do Comércio (OMC), instituição que regula o comércio internacional e que é vista com restrições por sindicatos e partidos de esquerda em diferentes países.

“A OMC cria um regime legal. Talvez não seja o ideal, ela foi criada pelos países capitalistas, mas é um regime legal”, destaca. “Nunca escondi, quando perguntam, que me considero uma pessoa de esquerda. Eu sempre me considerei. Mas faço uma crítica à esquerda, que é essa falta de compreensão completa do mundo com que a gente está lidando. Simplificando demais, é um pouco como em 1962, 1963, falavam ‘é uma democracia burguesa, não vale nada’. Depois veio a Ditadura todo mundo passou a valorizar a democracia burguesa com todos defeitos que ela tinha”, argumenta, insistindo em uma linha pragmática de reflexão. “A OMC pode ser criticada, mas não encontro substituto. Não existe maneira de construir uma utopia para interdependência econômica mundial melhor que a OMC”.

Como primeiro resultado direto do ultranacionalismo de Trump, Celso Amorim cita o fato de Trump ter anunciado o fim das negociações do Acordo de Parceria Transpacífico (TPP, da sigla em inglês). Como crítico deste modelo de acordo internacional, o embaixador, mesmo com todas ressalvas ao novo presidente, classifica a decisão como acertada. “Para grande decepção da elite brasileira que estava ansiosa para assinar acordos deste tipo com os Estados Unidos. Acho que o ministro das Relações Exteriores  [José Serra] é mais ambíguo sobre isso, mas a grande mídia não falava de outras coisas, da chance de modificar essa política dos governos petistas de privilegiarem ou acordos Sul-Sul ou a OMC, falando como se a OMC fosse uma coisa marxista, como se fosse criada pelo Lenin”.

Entre as críticas aos atuais acordos de “livre comércio” estão a falta de transparência e participação democrática, além da imposição de cláusulas vinculantes que não podem ser revistas. “Eu acho que essas ações do Trump nos livraram desse pesadelo. Acho até que o atual ministro de Relações Exteriores não seria tão a favor, mas a lógica do governo, do ministro da Fazenda, de outras autoridades, seria de fazer esse tipo de acordo. Seria um desastre. O Brasil teria que abandonar políticas de genéricos na saúde, não poderia mais dar subsídios governamentais”, lista.


Jocelio Drummond, Terra Budini, Celso Amorim, Gerhard Dilger e Jorge Pereira Filho no debate realizado no auditório da FRL, em São Paulo.

O embaixador acredita que, além de estar relacionada ao discurso ultranacionalista, a decisão de Trump tem ligação também com o objetivo de isolar a China, fragmentando o comércio mundial. Para Amorim, um cenário multipolar pode ser uma oportunidade para o Brasil assumir um papel mais relevante. Ele lamenta, porém, a falta de ações diplomáticas. Cita como exemplo o fato de o Brasil não ter nem tentado mediar a crise envolvendo a Venezuela e o Mercosul, tendo se autoexcluído da negociação e colocando em risco o próprio Mercosul. “É inconcebível, independente de ser a favor ou contra o Maduro”, diz, referindo-se ao presidente venezuelano Nicolás Maduro. Ele lembra que, pela primeira vez, este ano não aconteceu a Cúpula do Mercosul.

O muro do México

Ao defender que, mais do que focar na figura de Trump, é necessário tentar compreender as correntes políticas e o discurso racista que garantiram sua eleição, Celso Amorim defende uma abordagem aprofundada sobre o fenômeno que classifica como trumpismo. Neste sentido, lembra que é importante não esquecer que, mesmo durante a presidência de Barack Obama, aconteceram problemas sérios. A diferença, avalia, é que Trump exagera. “Ele não tem pudor em revelar para quem está trabalhando. Até porque ele encontra boa repercussão nisso. Quando ele diz ‘Only America First’ [Primeiro Só América], é quase um pleonasmo. Vai ser só América em primeiro lugar. Se é só América não precisa dizer que é em primeiro, mas ele faz questão de enfatizar. Obviamente isso tem eco no público. Ao mesmo tempo que tem esse eco nesses setores da população que se sentiram marginalizados ou não adequadamente tratados, mineiros, trabalhadores industriais, setores que poderiam ter sido cultivados por uma esquerda americana”, detalha.

“O que eu temo muito é que há implícito no discurso do Trump o elogio ao egoísmo, um egoísmo quase levado à loucura. ‘America first’, minha classe social primeiro, minha família primeiro, meu sexo primeiro, vai tudo aí. Eu primeiro. É uma visão anti-humanista, consagrada nessa frase simples”, afirma. “Claro que nós queremos o Brasil em primeiro lugar, mas depende de como você diz isso, como age. Tem que conciliar com interesse de outros”.

Para o embaixador, essa postura pode levar não só a um tensionamento, como até a conflitos mundiais. “É ruim também pelo lado da imprevisibilidade. É um homem que começa a ter uma atitude hostil com a China, por exemplo, a ter relações com Taiwan, o que não acontecia desde a época do Nixon. A gente fica temeroso que alguma coisa dessas possa redundar em um conflito”, destaca, citando o muro do México como outro exemplo da nova postura internacional dos Estados Unidos. Como parte de suas promessas de campanha, Trump, sempre com um discurso agressivo contra mexicanos, anunciou que construiria um muro na fronteira, obra cuja viabilidade foi imediatamente questionada – entre os críticos está o documentarista Josh Begley, que produziu um vídeo intitulado “Best of Luck with the Wall” [Boa sorte com o muro], reunindo imagens de satélite de toda a fronteira, com o objetivo de chamar a atenção para a dimensão da parede que Trump propõe erguer.

Field of Vision – Best of Luck with the Wall from Field Of Vision on Vimeo.

Pressionado em relação ao custo da obra, Trump passou a defender a ideia de que o governo dos Estados Unidos cobraria do próprio México o valor, sobretaxando transações comerciais. “A criação do muro é uma ideia duplamente espantosa. É espantosa como ideia, mas é mais ainda quando diz que os mexicanos é que vão pagar pelo muro. Nem o Benjamin Netanyahu [primeiro-ministro de Israel] pediu que os palestinos pagassem o muro. Talvez ele até o faça indiretamente, mas não chegou a dizer que os palestinos iam pagar pelo muro que os impede de entrar na terra deles. No caso dos Estados Unidos não é na terra deles mas é a terra em que eles estão ligados econômica e socialmente há muito tempo”, diz Amorim, insistindo que tais situações poderiam ser também oportunidade para maior protagonismo internacional do Brasil. “O problema é que não tem lideranças. Até imagino: se fosse o presidente Lula ele já teria ido ao México, manifestar solidariedade, convidar o México a entrar no Mercosul…”.

Assista ao debate na íntegra

O evento realizado na Fundação Rosa Luxemburgo teve cerca de duas horas e vinte minutos de duração e foi transmitido pela Fundação Perseu Abramo. Além de Celso Amorim, participaram também Jocelio Drummond, secretário regional da Internacional de Serviços Públicos e integrante da Rede Brasileira Pela Integração dos Povos (REBRIP) e Terra Budini, pesquisadora do centro de Relações Internacionais da Fundação Perseu Abramo e professora do curso de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), além de Gerhard Dilger e Jorge Pereira Filho, respectivamente diretor e coordenador da Fundação Rosa Luxemburgo.

Veja o registro em vídeo:

Fotos: Daniel Santini (imagem que abre o texto) e Verena Glass (demais fotos).

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