Numa sociedade para qual as necessidades básicas, como moradia e alimentação, não se apresentam como problemas em aberto, mas aparentemente superados, a normatização da vida chega ao paroxismo.

Com atmosfera inversa ao universo feérico das alegorias de Fellini, mas em registro enganosamente non-sense parecido, o filme O Lagosta critica de forma perturbadora a regulação dos sentidos e dos desejos, portanto da vida íntima, como chancela à convivência no mundo dito desenvolvido.

Não se trata de um futuro distante ou distópico, diferentemente da coleção de filmes apocalípticos tão em voga. Poderia estar acontecendo agora.

O mundo deste filme é pequenino, mas nele cabe a tensão entre três esferas de poder. Uma delas é o espaço de preparação ou readaptação para a vida em comunidade. Um hotel sofisticado, espécie de spa, para onde são enviados os solitários e solitárias em idade adulta – recém-separados, viúvos, abandonados em geral – para encontrarem o que oficialmente é chamado de uma nova paixão. Ao fim de determinado período, quem não conseguir é transformado em animal. O simulacro de democracia ou livre arbítrio se dá, aqui, na possibilidade de escolher qual animal se quer ser.

Bem próximo dali, há a floresta, local de ação dos rebeldes. Eles pretendem desmontar essa normatização da vida burguesa familiar, construindo a liberdade de ser só, caso se queira. Difícil não enxergar no grupo uma inspiração à Robin Hood ou guerrilhas.

A terceira dimensão é a cidade, onde pessoas que enfrentaram com sucesso a doutrinação e as diferentes etapas do programa aplicado pelo hotel podem transitar com certa desenvoltura, desde que se lembrem sempre de carregar os documentos que comprovem sua condição de casados. A cidade é fundamentalmente o espaço das compras, do mercado. As pessoas se encontram diante das prateleiras, dos anúncios, das vitrines.

Os rebeldes também se dirigem para lá, de tempos em tempos, disfarçados de casais, levando consigo o salvo-conduto (falso) de profissionais bem-sucedidos, estáveis e bastante ocupados.

 

Farrel e Rachel em cena na floresta

O Lagosta foi dirigido pelo grego Yorgos Lanthimos, que concorre ao Oscar de melhor filme e direção deste ano por A Favorita. Rodado em 2015, O Lagosta foi seu ingresso à vitrine do cinema internacional, com a ajuda de elenco estelar, componente que mede o prestígio de um realizador. E Lanthimos não fez por menos. Parte da estranheza – e ousadia – de seu filme é dirigir atores e atrizes premiados em atuações mais que contidas, uniformizadas, deixando a eles o desafio de transmitir as emoções e o dilaceramento da alma por intermédio justamente das expressões e gestos que podem nos denunciar – palavra policial aqui utilizada de propósito – nos espaços de normatização que nos acompanham pela vida afora.

No conflito que se dá naquele mundo, impossível não notar o fascínio provocado nos rebeldes por aspectos do modelo que combatem. No meio disso tudo, dogmas são adotados de lado a lado, como se deles dependessem a superação de etapas necessárias ao novo ou à ratificação do velho.

Aspecto não alardeado pelo filme, mas provavelmente o mais cruel, é que o processo de eliminação das diferenças resulte na quase completa totalidade de personagens brancos.

Lanthimos não parece querer ser levado muito a sério ou apontar saídas. O embuste é uma de suas técnicas narrativas. Portanto, o riso. Numa das sequências da história, a noite de dança e música não permite flerte. “Por isso só tocamos música eletrônica”, explica a organizadora ao participante que acaba de chegar.

Entre perguntas que surgem durante o filme – por que alguém decide ser funcionário do hotel ou como é escolhido para a tarefa, por exemplo – o diretor ainda deixa um mistério que só vai se revelar como tal depois que a história acaba, e sem aparente relação com o resto. E a solidão persiste, em meio ao funcionamento febril da economia, visto pelo espectador e apenas ouvido pela protagonista à espera de seu par.

O Lagosta (The Lobster, Ing., 2015)
Diretor: Yorgos Lanthimos
Elenco: Colin Farrel, Rachel Weiz, Léa Seydoux, Olivia Colman, Jessica Barden
Onde assistir: Netflix