No livro The Brazilian Workers’ of ABC, trinta anos atrás, John D. French já havia percebido o elo entre os fenômenos eleitorais e sindicais. Em Lula e a Política da Astúcia: de metalúrgico a presidente do Brasil, lançado em agosto pela Expressão Popular & Fundação Perseu Abramo, o professor estadunidense se debruça sobre “uma personalidade histórica de primeira ordem”, com ênfase em sua trajetória pessoal, vivências familiares, origem retirante e companheiros de luta no contexto da evolução socioeconômica do estado de São Paulo, a partir de 1950. Segue a resenha.

A biografia, de 684 páginas, prende a atenção com uma narrativa bem distribuída. A edição em português encontrou dificuldades com editoras comerciais e universitárias. Foi viabilizada graças a University of North Carolina Press e o autor, que abriram mão gratuitamente dos direitos de publicação para chegar “aos brasileiros, que são os maiores interessados e os mais impactados pela contribuição para compreender melhor o seu país”. O historiador adverte: “Neste livro, Lula não será tratado isoladamente nem como alguém inteiramente fundido ao seu contexto”. Tampouco explicado com o recurso a abstrações autossuficientes como “carisma” ou “lulismo”. A tradução coube a Lia Machado Fortes, e resulta em ótima leitura. O texto é uma densa aula de dignidade.

Na Primeira Parte, “Origens e raízes”, French apresenta a saga da família do jovem Luiz Inácio, que as “elites” desejariam que permanecesse oculta. Após, com uma lente analítica de fora para dentro, enfoca a “Detroit latino-americana como exemplo extremo de produção industrial em escala nunca vista. A gigantesca fábrica da Volkswagen em São Bernardo empregava entre 35 e 40 mil trabalhadores em único complexo”. As greves dos metalúrgicos do ABC, no final da década de 1970, tiveram um duplo sentido. Infundiram uma formidável energia em um “novo movimento sindical” que se espalhou pelo território nacional; ao mesmo tempo, fortaleceram a oposição na sociedade civil ao regime militar. A escala e a intensidade das mobilizações foram assombrosas.

Entre os caminhos para narrar a trajetória do biografado, a escolha recaiu na imagem do “pau de arara, que simboliza mudanças ocorrendo de maneira tão rápida que os desdobramentos passaram despercebidos por muitos contemporâneos; a geração mais nova se deparou com uma sociedade moderna e urbana, mas seus pais tinham nascido em um mundo muito diferente”. Na perspectiva da intelligentsia, os retirantes nordestinos acenavam para intervenções igualitaristas do poder público, no intuito de reformas sociais, do desenvolvimento nacional ou do socialismo. Era evidente a lancinante divisão da nação entre um polo tradicional (Nordeste) e um modernizante (São Paulo). “A metalurgia – tendo como centro o ABC – estava na linha de frente de uma revolução industrial”. A célere urbanização da região, acompanhada de uma industrialização vertiginosa geradora de empregos, renda e autoestima atraía os migrantes rurais, de perto e de longe (Garanhuns).

Do ambiente doméstico, o filho ilustre sublinha o valor moral da “teimosia” para viver com independência (dona Lindu, mãe de Lula), amar (Marinete, irmã de Lula), sonhar com a sociedade justa (Frei Chico, irmão sindicalizado). “A teimosia me fez ser presidente”, declarou Lula no retrovisor. Amparado na obstinação para viver, amar e sonhar o excluído pelo nascimento palmilhou o que se afigurava uma missão impossível, improvável em qualquer estatística. A classe média verte o traço moral da tenacidade como sinônimo de uma insistente ambição para ir adiante, com fé.

A militância sindical, de certo modo, condensou a teimosia no plano da luta econômica e propiciou uma oportunidade para forjar laços com homens e mulheres corajosos. Mas não é tudo. Para uma analogia com o imaginário dos dois irmãos, posteriormente ao golpe de 1964, “Lula, o cidadão-torneiro mecânico, e Frei Chico, o cidadão-trabalhador, são parte de uma mesma história de autoafirmação da classe trabalhadora de São Paulo”. O movimento de configuraração classista é a síntese de momentos díspares, em face da hegemonia ideológica exercida pelas classes dominantes.

A entrada de Lula no sindicato, em uma chapa situacionista, dependeu da indicação do politizado mano (filiado como Vladimir Herzog ao Partido Comunista Brasileiro / PCB). As polêmicas na assembleia, que assistiu quieto sem alcançar os motivos políticos, eram esgrimidas por quadros de organizações na clandestinidade. À época, o salário mínimo perdera 20% do poder aquisitivo. “Mas a retórica do ‘nós-contra-eles’ dos jovens revolucionários ofuscava a distância que separava os membros das classes mais letradas, por radicais que fossem, dos trabalhadores em cujo nome eles alegavam falar e agir. Ideias imaturas e livrescas os deixavam alheios aos ressentimentos viscerais dos trabalhadores”, aponta John French. As vanguardas não sabiam interpelar a alma do operariado.

Para Lula, a empatia com o sofrimento plebeu não era uma equação intelectual, mas existencial. A pobreza, a imersão nas carências materiais, a fome e o desemprego foram experimentados por da Silva. Sobre a procura infrutífera por emprego, em 1965, relata: “Saía às 6 horas da manhã, pegava a pé a via Anchieta”. Nada era mais humilhante do que “sair com uma carteira profissional de manhã e voltar de tarde, com ela suadinha sem arranjar emprego meses após meses”. As políticas públicas e sociais de reparação dos governos do povo, para o povo equivaleram a uma autocrítica assumida pelo Estado, por incúrias imemoriais que sacrificaram as camadas mais vulneráveis.

A Segunda Parte da biografia, “De Luiz Inácio a Lula”, abre com a enaltação de importantes instituições na peregrinação “a Lula” até os vinte e poucos anos: a Escola Roberto Simonsen do Senai inaugurada em 1954 e a portentosa sede de seis andares do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e de Diadema, inaugurada em 1973. Na primeira, formou-se aprendiz e, na sequência, torneiro mecânico; na segunda, ingressou como diretor em tempo integral. Ambas as construções ecoavam o otimismo, de cima para baixo, com a dinâmica de industrialização do país no pós-guerra. Refletiam a esperança “em uma elite da classe trabalhadora inspirada não pela luta de classes e sim pela paz social”, como pretendia o sistemático sociólogo Oliveira Viana que se dedicou com Lindolfo Collor, ministro do Trabalho, a elaborar a legislação trabalhista getulista.

Apenas na p. 259 e na 278 ss, lê-se o termo “astúcia” presente no título da pesquisa. A intenção é mostrar como a política cotidiana afetou a percepção da classe operária, “dando forma à astúcia” por meio da qual os trabalhadores desbravavam a metropolitana São Paulo. Era o jeito para burlar a repressão policial-militar e a vigilância dos capatazes sobre os corpos, nas fábricas. “A astúcia é a arte subalterna de driblar as dificuldades”. Ou: “A astúcia era central na luta para ‘vencer na vida’ na geração de Lula”. Aquela era e é uma estratégia de sobrevivência para enfrentar adversidades.

A melhoria na condição de vida dos trabalhadores qualificados do ABC se expressava tanto dentro, quanto para além dos muros da usina. O questionamento sobre os frutos do progresso no “milagre econômico” acontece na tomada de consciência de seus direitos negados, no campo de batalhas “de uma guerra de manobras do ‘nós’ contra ‘eles’, comum nos locais de trabalho”. Já a “dissimulação” tatuava a figura universalmente odiada e execrada do “dedo-duro”, em conluio com os poderosos.

“Em seu imediatismo, os trabalhadores tinham muito a comemorar: terrenos comprados, casas construídas ou expandidas, bens de consumo duráveis adquiridos e mais educação formal”. A afirmação profissional e a ascensão econômica se conjugavam na parcela que aportou na capital paulista, no pau de arara e na miséria. A qualificação permitiu que pensassem com mais autonomia. À diferença dos trabalhadores não qualificados, mantinham um maior senso de responsabilidade.

“Trabalhadores qualificados possuíam uma motivação poderosa de buscar a conquista individual associada a um orgulho profissional robusto. Além de um certo espírito de equipe, esses homens eram verdadeiras máquinas de aprender, impacientes com a subordinação social e cultural e entregues a uma suspeita persistente sobre a forma como o botim do crescimento econômico estava sendo dividido entre patrões e empregados”, frisa French. O pensador Ortega y Gasset parece aconselhar o biógrafo, a cada instante, acerca da personagem e suas intrincadas circunstâncias.

Nas ciências sociais, usa-se a expressão “socialização” para designar os processos que induzem os seres humanos a adotar padrões de conduta e valores do entorno social. Esse aprendizado, no caso de Lula, tem um antes e um depois da descoberta sobre a força do coletivo organizado, seja para reivindicar direitos, seja para se proteger do arbítrio dos instrumentos de repressão a cargo estatal. “Era essa mobilização coletiva que gerava o carisma que Lula veio a exercer como comandante de um exército de peões”. O carisma estava estampado “nas mentes, na cultura e nas emoções daqueles que aplaudiam, vaiavam e vibravam durante as manifestações”. A noção de coletivo organizado foi uma lição aprendida na luta sindical, a seguir transferida para a política com audácia e sucesso.

“Somos todos peões! Somos todos Lula!” No slogan criado pela base sindical se exprimia a consciência de classe “para si”, dos trabalhadores. Na terminologia de Pierre Bourdieu (citado por French), “o significado, isto é, o grupo, é identificado com o significador, o indivíduo, o porta-voz”. O carisma está envolto nessa mágica social. Os atos de fala eram performáticos por constituir sujeitos sociais que, então, se definiam politicamente. À semelhança dos intelectuais públicos, à la Sartre, agora anônimos laboriosos se tornavam trabalhadores públicos, à la Lula – cabeça erguida.

O princípio da organização se alastrou pelos movimentos urbanos e rurais. Expoentes emprestavam um valor especial às “pessoas não importantes”, nos bairros, nas festas, nos bares, em interconexões individualizadas. Tais lideranças ficaram conhecidas como “autênticas”, porque livres da corrupção e da demagogia. A horizontalidade facilitou a emergência de uma identidade coletiva e construiu o poder dos trabalhadores contra os patrões e o Estado, em esferas públicas de resistência. O Partido dos Trabalhadores (PT) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) são herdeiros da aura do estádio de Vila Euclides e da democracia de base. A eleição de Lula, em 2002, simbolizou o apogeu das lutas democráticas. O Fórum Social Mundial (FSM), em Porto Alegre, auxiliou a mundializar a marca das administrações petistas, o Orçamento Participativo (OP). Nascia a cidadania-partícipe.

Em 1993, o ex-comunista Jorge Castañeda (em A Utopia Unarmed), no México, e o ex-socialista Fernando Henrique Cardoso (The Challenges of Social Democracy in Latin America), no Brasil, teciam críticas à esquerda e abraçavam o livre mercado, o Estado mínimo, a racionalidade da acumulação e os acordos com os EUA. Ao revés, um líder popular autêntico somava-se aos movimentos sociais para derrotar o “pensamento único”, organizar o Foro de São Paulo e denunciar o interminável bloqueio econômico imperialista a Cuba. O jornalista Elio Gaspari, ao escrever sobre “os anos de chumbo”, entusiasmou-se com a presença de Lula no cenário nacional, pintando-o como um homem “sem dono”. Leia-se sem articulação orgânica com a esquerda. Hoje, não parece partilhar da mesma opinião, pelo crédito concedido ao lawfare na programação da Rede Globo.

Ao centrar fogo no “neoliberalismo” e no despautério do Consenso de Washington (1989), o bloco contra-hegemônico empregou a astúcia no combate que travava ao capitalismo. Astuciosamente, guardou na gaveta o “capitalismo” para miná-lo sob um codinome, batendo-lhe no fígado como um boxeador. Essa foi a fonte de inspiração para o novo dicionário da política que recebeu impulso na apoteose de Hugo Chávez na República Bolivariana da Venezuela, Evo Morales na Bolívia e Lula no Brasil. “Pelo amor de Deus, pedia o icônico metalúrgico aos economistas na administração federal, não cometam o erro de usar as palavras ‘desenvolvimento’ ou ‘crescimento econômico’ sem acrescentar a frase ‘redistribuição de renda’”. Era a dimensão capitalista da ganância que revelava.

A Terceira Parte, “Lula, os peões do ABC e a busca pela Presidência”, da alentada biografia, reporta-se ao companheiro que cumpre as promessas já empossado mandatário. Há trechos emocionantes, como aquele (p. 589) que alude ao estímulo dos governos Lula e Dilma à “economia solidária”, que engloba uma rede de cooperativas. A mais simbólica das iniciativas bem sucedidas, que lidam com o precariado, organiza cerca de 800 mil valentes catadores de materiais recicláveis, no lixo. O frei Leonardo Boff denomina-os de “novos profetas”, sob o prisma do Primeiro Testamento, por trazerem uma proposta ecológica alternativa à lógica do consumismo e do desperdício na “sociedade da abundância”. Durante o período no poder, Lula passou cada noite da véspera de Natal com os batalhadores que se ocupam dessa atividade ambientalmente correta.

Em 24 de dezembro de 2010, no encerramento do segundo mandato, levou Dilma Rousseff para conhecer dois mil cooperativados de todo o país. No salão onde se reuniram havia faixas artesanais com inscrições do tipo: “A luta é boa, a luta é dura, a luta continua”; “A rua cata, a rua canta, a rua encanta com luta”. Nas entrevistas, orgulhosos da presença simultânea de dois presidentes, não pouparam louvores ao governo que cuidou dos pobres e “deu comida e trabalho às pessoas”.

A obra em tela tem o mérito de descortinar janelas que permitem ver a árvore, sem esconder a floresta; vice-versa. Outras são subentendidas, como as lides de Celso Amorim, “o melhor chanceler do mundo”, conforme a revista Foreign Policy. Incansável na implementação orientada pela régua lulista da estratégia Sul-Sul, que inseriu a África nas negociações. Ou o trabalho do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), sob responsabilidade de Miguel Rossetto, para trazer visibilidade a milhões de trabalhadores ainda desassistidos. Quilombolas (comunidades ancestrais formadas por escravizados fugitivos), seringueiros (como Chico Mendes) e ribeirinhos (como os que descobriram os corpos assassinados de Tom Phillips e Bruno Pereira, na Amazônia) obtiveram reconhecimento.

A lembrança da série de vitórias para redimir o abandono rural atávico evoca o gesto do pequeno agricultor gaúcho, no Grito da Terra Brasil, enrolado na bandeira patriota, que abraçou o ministro Rossetto ao contar que fora ao Banco para entregar a sua propriedade minifundiária, e informaram que o Seguro Agrícola havia quitado a sua dívida – a boa política emociona também os gestores. Isso, num dos tripés da inacabada Revolução Burguesa no Brasil, a “questâo agrária”, que com a “questão nacional” e a “questão democrática” nunca se completaram, observa Florestan Fernandes.

Não escapou da análise, a “gangue da Lava Jato” e a “aprovação de FHC sob falsas acusações que visavam tirar Lula da disputa presidencial de 2018”, o que viabilizou a escalada do “ogro de extrema-direita”. Houve complacência com quem “na carreira, orgulhosamente, ficou de fora do consenso democrático da Nova República; sua postura fascista, racista e machista sempre atraiu atenção, incluindo repreensão pública, mas nenhum custo, dada sua marginalidade política”.

Jair Bolsonaro, assim, prosseguiu com as declarações belicosas contrárias “aos fracos – mulheres, negros, indígenas, gays, nordestinos, trabalhadores braçais, ambientalistas e militantes de esquerda, e contra os políticos (chamados de corruptos), os analfabetos e os acadêmicos com educação demais”. A incompleta questão democrática pariu o ogro; a incompleta questão nacional, as privatizações entreguistas a preços de liquidação da Petrobrás, Eletrobrás, Banco Central, etc.

Na Conclusão do texto, com a chamada que escancara a perseguição padecida (“Vítima de seus sucessos”), se destaca a virtú do governante condenado em processo fraudulento. A Suprema Corte da Justiça brasileira atestou a inocência, confirmada pela Justiça internacional através da Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). “O carismático Lula mobilizou palavras, interesses e emoções para estabelecer e cultivar relações; o Lula organizador ampliou sua influência com uma dedicação para a construção de instituições, por meio de movimentos, sindicatos, partidos e alianças governamentais” (p. 616). Sequer os adversários ousam questionar.

Lula é uma “metamorfose ambulante”. Nas palavras do próprio: “Quando me perguntam sobre o que sou e a que vim, digo sempre que sou o resultado da minha classe. Se a minha categoria evolui, eu evoluo” (Depoimento ao Projeto Preservação da Memória dos Trabalhadores dos ABC, Museu da Pessoa, abril de 2000). A radicalidade do líder é uma expressão da politização dos liderados.

No Epílogo, John French revisita o debate teórico (Tolstoi, Carlyle, Plekhanov, Trotsky, Bourdieu, Sartre, Engels) sobre o papel dos indivíduos na história. A tendência é “engolfar os sujeitos históricos concretos em mecanismos explicatórios mais amplos”, em que os militantes individuais são retratados “como participantes de um sistema impessoal”, alerta o saudoso historiador e dirigente do PT Marco Aurélio Garcia (1941-2017), no artigo “The gender of militancy: notes on the possibilities of a different history of political action”, lembrado nos parágrafos finais.

Em suma, como ensinou o iluminista francês dos “três poderes”, Montesquieu, nas Cartas Persas publicadas há três séculos, é preciso aprender com o olhar estrangeiro. Santo de casa faz milagre.

 

Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul

Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.