Patricia Victoria Gomes é afro-argentina, ativista feminista e antirracista. Advogada formada pela Universidade de Buenos Aires (UBA), integra a direção da Sociedade Socorros Mutuos Union Caboverdeana e a área de gênero da Comissão “8 de Noviembre”, data que celebra o Dia Nacional dos Afro-argentinos e da Cultura Afro. Inserida no calendário oficial argentino em 2013, a data tem como símbolo María Remedios del Valle, mulher afro-argentina considerada a “Mãe da Pátria” e heroína de guerra independentista.

Como parte das celebrações do Dia da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, o projeto Reconexão Periferias, da Fundação Perseu Abramo, publica entrevista com Patrícia, feita por Juliana Borges, em que a ativista afro-argentina conta um pouco sobre o que é viver e lutar numa sociedade que sucessivos governos e políticas educacionais oficiais pretenderam classificar como totalmente branca.

Acompanhe:

Primeiro, gostaríamos de falar um pouco sobre o panorama dos afrodescendentes na Argentina, porque quando falamos da Argentina, no Brasil, as pessoas dificilmente pensam que existam afrodescendentes. Como essa invisibilidade histórica se construiu?

Patrícia Gomes: A construção da invisibilidade das comunidades negras na Argentina ocorreu desde a fundação deste país como república. Fomos vítimas de um processo histórico e sistemático de negação e invisibilidade que levou nossas comunidades a mergulhar na marginalidade e na pobreza, vendo seus direitos sistematicamente violados.

As classes dominantes do final do século XIX conceberam um modelo de país associado ao desenvolvimento e progresso, objetivos que somente poderiam ser alcançados através da população dos vastos territórios argentinos com migração branca e europeia. Assim, em 1853, foi adotada a Constituição Nacional, que contém um artigo que afirma que “o Governo Federal promoverá a imigração européia” (Art. 25 da Constituição Nacional Argentina); artigo racista atualmente em vigor e que não foi modificado nas diferentes reformas constitucionais.

Podemos ver como, da mesma norma fundamental, a Argentina meticulosamente construiu a ilusão de ser um país fenotipicamente branco e culturalmente europeu; mito que subsiste até os dias de hoje e se traduz na estrangeirização constante que o povo afro-argentino sofre, porque não podemos ser negros e argentinos.

Em 1996, o ex-presidente Carlos Menen, em uma turnê diplomática nos Estados Unidos, sustentou que “na Argentina não há negros, esse problema é do Brasil”. Em 2018, disse o ex-presidente Mauricio Macri, no Fórum Mundial em Davos, que somos apenas descendentes de europeus. Essas expressões, realizadas pelos principais mandatários, nada mais são do que o reflexo da construção ideológica, historiográfica e cultural de um país que instalou solidamente a ideia de uma Argentina branca em seu imaginário popular.

Créditos: arquivo pessoal

 

A invisibilidade estatística foi uma das principais ferramentas manipuladas pelo Estado para apagar as comunidades negras dos registros oficiais e da história, para apoiar seu projeto civilizador e embranquecedor – estratégia acompanhada de argumentos construídos e sustentados ao longo do tempo e que se revezam com o intuito de que os negros “morressem em guerras e epidemias”.

A escola, instituição articuladora dos discursos hegemônicos, sempre apresentou afrodescendentes como parte apenas de nosso passado colonial, mostrando imagens estereotipadas e limitadas ao festivo. Não é estranho ver até hoje as representações nos eventos escolares em que pintam as crianças com cortiça queimada para representar “la negrita”, vendedora de empanadas ou “el negrito”, como vendedor de velas na praça, no dia 25 de maio, o dia da Revolução da Pátria.

Somos mostrados em papéis subordinados, e a história verdadeira está oculta, sendo que é repleta de grandes feitos, realizados por pessoas de origem africana, como María Remedios del Valle, uma negra e argentina, que lutou como um soldado nas guerras pela independência, que foi nomeada capitã do Exército e chamado “mãe da pátria”. Sim, a mãe da pátria argentina era negra, argentina e pobre. Tudo o que os argentinos não querem ser.

Como as tensões raciais ocorrem hoje no país? Sabemos que existe uma questão em que o debate racial e racista também inclui a questão dos imigrantes. Como essa integração acontece e como os governos têm reagido a isso?

PG: A partir dos anos 1990, a Argentina começou a receber um grande número de imigrantes africanos do Mali, Gana, Serra Leoa, Senegal, entre outros. Na última década, essa imigração se intensificou, principalmente do Senegal. Milhares de imigrantes afro-latino-americanos também começaram a chegar. Essas imigrações, de causas fundamentalmente econômicas e políticas, trouxeram consigo uma revitalização do movimento negro na Argentina, principalmente nas grandes cidades onde se estabeleceram, mas também cobriram o véu de um fenômeno sempre negado: racismo crioulo (como eu gosto de chamar).

Hoje, ninguém pode negar a existência de negros na Argentina, porque quem sai às ruas vê nossos companheiros africanos que subsistem no comércio ambulante. Esses mesmos camaradas são os que sofrem violência institucional e racista pelas forças de segurança, constantemente.

Mas o que acontece quando matam um afrodescendente nos Estados Unidos, a milhares de quilômetros de distância, manifestações de solidariedade e indignação surgem imediatamente nas redes sociais, mas quando um afrodescendente é espancado pela polícia em qualquer avenida de Buenos Aires, ninguém faz nada. Será que ninguém vê isso?

Essa “solidariedade de papelão”, essa hipocrisia é aquela que atravessa toda a sociedade argentina. A mídia fala sobre máfias que exploram os senegaleses, mas a polícia e a justiça não titubeiam quando tiram de nossos irmãos a única coisa que eles têm para sobreviver, e exercendo violência física incomum. Como sempre, o último elo da cadeia é atacado.

A sociedade acredita e compra esses discursos xenófobos incentivados por referências da política local e pela mídia de massa, sem um mínimo de análise, e esse contexto tem um efeito devastador nas vidas de nossas comunidades que são constantemente criminalizadas e também culpadas por dificuldades econômicas que nosso país sofre.

Diante desses fatos, não podemos continuar afirmando que o racismo na Argentina não existe. A presença de imigrantes africanos mais uma vez prejudica as relações raciais neste país, que vê os negros como um perigo, uma desculpa perfeita para implantar o aparato repressivo do Estado contra nós. As consequências desse racismo se estendem a todos os afrodescendentes e afro-argentinos, que são vistos como alienígenas e continuam a formar, como nossos irmãos afro-americanos, o grupo visto como risco ao ideal branco e europeu sobre o qual a sociedade argentina repousa.

Quais são as principais demandas do movimento afro-argentino da atualidade? Existem dados coletados sobre a população afro-argentina, para que políticas públicas efetivas possam ser construídas para reduzir as desigualdades geradas pelo racismo?

PG: Uma das principais demandas do movimento afro na Argentina é a inclusão da variável étnico-racial no Censo Nacional da População, que seria este ano, mas que, devido à pandemia, certamente será adiado.

Em 2005, o primeiro teste piloto foi realizado para medir a população afrodescendente na Argentina, realizado pela Universidade Nacional Tres de Febrero (Untref), com consultoria técnica do Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec), financiamento do Banco Mundial, e teve no conselho dois líderes de organizações afrodescendentes: Miriam Gomes, da Sociedade Cabo-Verdiana de Dock Sud, e Lucía Molina, da Casa da Cultura Indo-Africana Americana em Santa Fé. Neste teste piloto foi proposto atrair a população afrodescendente do país por meio de perguntas baseadas na autopercepção ou no reconhecimento das pessoas registradas.

Nesta pesquisa, entre 4% e 5% dos entrevistados se reconheceram como afrodescendentes, uma porcentagem projetada para a população total na época (40 milhões de habitantes) nos permitiu inferir que cerca de 2 milhões de pessoas se reconhecem como afrodescendentes em nosso país. Esses números começaram a fraturar a invisibilidade de nossa comunidade construída ao longo de séculos.

O Censo Nacional de 2010 reuniu esse importante trabalho e incorporou a questão sobre a origem afro das pessoas em uma de suas questões. Infelizmente, essa pergunta fazia parte de um formulário aplicado apenas a 10% da população, fornecendo apenas uma amostra do que foi relatado lá: 149.493 pessoas de 62.642 domicílios se reconheceram como afrodescendentes, o que representa 0,4% do total da população. Números um pouco decepcionantes, considerando os dados do Teste Piloto. As organizações afro afirmam que somos muito mais de 2 milhões de afrodescendentes na Argentina.

Algo que é muito importante mencionar com relação aos dados divulgados pelo Censo Nacional é de que 92% das pessoas que se reconheceram como afrodescendentes são argentinas, fato que põe em cheque o mito de que não há negros argentinos.

Apesar dos resultados, a inclusão da variável étnica no Censo Nacional foi uma das conquistas mais importantes da comunidade afro, demandada há décadas, e que finalmente estava se tornando uma política de Estado. Esse fato permitiu que as organizações continuassem as discussões sobre a necessidade de incorporar essa variável em todos os censos e pesquisas oficiais. Não assumir esse compromisso é continuar negando nossa existência e nossa realidade de desigualdade estrutural produzida pelo racismo. Sem estatísticas oficiais, não poderemos exigir políticas públicas focadas para a nossa comunidade que nos permitam remover obstáculos para efetivarmos direitos de nosso povo.

Com o assassinato de George Floyd e a reação da população afrodescendente nos Estados Unidos, vimos protestos se espalharem por todo o mundo. Alguns chamam isso de “levante global”. Como essas revoltas chegaram à Argentina? Sabemos que cada país com um passado colonial tem suas especificidades sobre como o racismo se executa e que isso afeta a maneira como a resistência é construída. Então, como esse momento de revoltas dialoga com o movimento afro-argentino?

PG: O assassinato de George Floyd nos Estados Unidos expôs, mais uma vez, a violência e o racismo institucional que as comunidades negras sofrem naquele país. Na Argentina, milhares de pessoas mostraram sua indignação e solidariedade nas redes sociais, enquanto a mídia passava repetidas vezes as terríveis imagens de nosso irmão Floyd sendo assassinado pela polícia e pela supremacia branca.

Como argumentei anteriormente, a hipocrisia da sociedade argentina significa que, quando esse mesmo ato de racismo explícito é sofrido por um camarada senegalês no meio rua em Buenos Aires, eles não reagem da mesma maneira, ou melhor, não reagem. Gostaria de saber se a situação das pessoas de ascendência africana na Argentina é melhor do que nos Estados Unidos.

O problema é que, na Argentina, as comunidades afrodescendentes foram excluídas de projetos nacionais que buscavam consolidar uma sociedade fenotipicamente branca e culturalmente européia, associando a brancura a ideias de progresso. As populações negras e indígenas foram apagadas da história, das estatísticas e de qualquer coisa ligada à “argentinidade”, instalando o mito “na Argentina não há negras ou negros”.

As revoltas globais e o #BlackLivesMatter propiciaram uma oportunidade interessante para as organizações afrodescendentes instalarem, mesmo por um momento, a discussão sobre o racismo na Argentina, falar sobre as formas particulares que ele toma no país, ligadas à história da negação da nossa identidade. Como sociedade pós-colonial e capitalista, o racismo existe e assumiu formas tão sutis que é altamente naturalizado.

Torna-se muito difícil fazer essa discussão porque não temos acesso aos meios de comunicação de massa, não temos representação em diversos níveis estatais para poder promover qualquer política pública que vise reverter essas situações. Eu realmente acredito que estamos a anos-luz de encontrar uma saída para os problemas raciais na Argentina. Não por falta de organização, mas por falta de vontade política de enfrentar seriamente o racismo.

O dia afro-argentino é comemorado no país em 8 de novembro. Conte-nos um pouco sobre essas celebrações e porque elas ocorrem nessa data.

PG: Outra conquista do movimento afro na Argentina foi a promulgação da Lei Nacional 26.852, de 24 de abril de 2013, que estabelece o dia 8 de novembro como o Dia Nacional dos Afro-argentinos e da Cultura Afro, em comemoração a María Remedios del Valle, mulher afro-argentina considerada a “Mãe da Pátria”.

Créditos: reprodução

Maria Remedios del Valle

Essa lei significa o reconhecimento daquela mulher negra e argentina, silenciada pela história oficial, a mesma história que diz que desaparecemos quase como por mágica. Esse reconhecimento poderia ter constituído um ponto de partida para a criação de políticas públicas, uma vez que insta o Ministério da Educação da Nação a incorporar no conteúdo curricular do sistema educacional, em todos os níveis, a comemoração daquele dia e a promoção de políticas públicas de cultura afro. Da mesma forma, confia ao Ministério Nacional da Cultura a comemoração deste dia por meio de políticas públicas que tornem visíveis e apoiem a cultura afro em suas diferentes disciplinas.

Verdade seja dita, muito pouco foi realizado desde a promulgação da lei. Às vezes, tenho a sensação de que isso significa nada mais que um reconhecimento meramente simbólico, de modo que nos acomodamos e temos um dia em que podemos tocar bateria (e parar de nos incomodar). Enquanto isso, as condições de vida das comunidades negras continuam precárias e, na Argentina, não existe uma única política pública direcionada à nossa comunidade.

Sem dúvidas, é necessário realizar uma autocrítica dentro de nossos movimentos, de onde teremos que considerar novas estratégias para colocar nossas demandas históricas na agenda pública, principalmente a luta contra o racismo estrutural.

Como está a relação entre o movimento afro-argentino e a agenda parlamentar? Como é a participação e representação política dos afro-argentinos?

PG: Há realmente muito pouco a dizer neste momento. Como discuti ao longo da entrevista, nossas comunidades carecem de representação em vários níveis estatais para poder influenciar politicamente a agenda oficial do governo argentino. Não temos parlamentares negros, portanto, também não temos impacto na agenda parlamentar. Como organização, apresentamos vários projetos de lei no Congresso Nacional e nas legislaturas locais. Um dos projetos que aguardam discussão no Congresso, desde 2018, é o que propõe a criação do Instituto Nacional de Assuntos Afro-Argentinos, Afrodescendentes e Africanos (Inafro), cujo objetivo será a promoção, criação e aplicação de políticas públicas e ações afirmativas direcionadas às populações mencionadas. Ao mesmo tempo, visa tornar visível e contribuir para o valor histórico da contribuição das pessoas de ascendência africana para a identidade nacional e promover os direitos humanos deste grupo.

Estamos em trânsito da Década Internacional Afrodescendente, proclamada pela Organização das Nações Unidas (Resolução 68/237 de 23 de dezembro de 2013), que abrange o período de 1º de janeiro de 2015 a 31 de dezembro de Dezembro de 2024. O Estado argentino aderiu à Década por meio de um decreto em 2017, mas até agora nenhuma medida ou programa concreto foi adotado para combater o racismo. Nós ainda estamos esperando.

Créditos: reprodução

Maria Fernanda Silva

Não posso deixar de mencionar que, este ano, o presidente Alberto Fernández nomeou uma mulher afro-argentina (Maria Fernanda Silva) para uma carreira diplomática como embaixadora da Argentina no Vaticano, a primeira mulher a liderar essa embaixada, e ela é negra. Um afrodescendente também foi nomeado diretor nacional de pluralismo e interculturalidade. Acredito que sejam pequenos gestos que devem ser destacados, mas ainda é necessário um compromisso real de erradicar o racismo que afeta e marginaliza nossas comunidades.

A pandemia e o isolamento social obrigatório estabelecido na Argentina expuseram as terríveis desigualdades que as comunidades afro sofrem, especialmente mulheres e grupos étnicos diversos; os empregos precários e informais que a maioria de nossa população ocupa; mas também demonstrou as redes de solidariedade que somos capazes de criar diante do sofrimento e das necessidades de nossa comunidade. Onde o Estado não responde, estão as organizações.

Mesmo com as características específicas, como você acha que podemos fortalecer e construir uma agenda antirracista latino-americana e até interamericana?

PG: Acredito que é essencial articular nossas lutas, em todos os cantos do continente americano, das três Américas. Sempre admirei movimentos políticos como os Panteras Negras ou Malcolm X, dos quais fui influenciada na maneira como concebo meu ativismo. É verdade que cada país tem suas características particulares e seus próprios processos históricos que tornam o racismo manifestado de maneiras diferentes. No entanto, aprender com outras lutas é enriquecedor porque nos permite pensar e repensar nossas próprias estratégias de acordo com nossas condições materiais de existência.

Sei que, no Brasil, a luta dos movimentos negros sempre foi muito poderosa e visível, ao contrário do que acontece na Argentina, que vocês conseguiram ter representação parlamentar em diferentes níveis e que produziram vários intelectuais, principalmente mulheres negras, que estão produzindo conhecimento a partir da negritude e para a negritude. Temos muito a aprender com essas lutas que ocorrem em outras partes do continente.

Definitivamente, acredito que devemos criar mais espaços de articulação e empoderamento de mulheres e diversidades afro no continente, gerar encontros, diálogos e trocas que enriqueçam nossas próprias lutas e resistências. Somos 200 milhões de pessoas de ascendência africana nas Américas. Devemos ser capazes de criar uma força continental de tal forma que seja inevitável que os Estados americanos prestem atenção às nossas demandas. Com diferentes formas e consequências, o racismo se manifesta em todo o continente, de modo que a resposta deve ser coletiva e transfronteiriça.