Por Fernando Ferreira, doutor em História Econômica e membro do GMarx-USP

No dia 18 de março de 1871, ao recusar-se a entregar ao exército francês os canhões que protegiam Paris do cerco prussiano, a Guarda Nacional, que era uma milícia composta por cidadãos comuns, definitivamente se colocou do lado dos trabalhadores parisienses que se recusavam a aceitar a rendição do governo de Salvação Nacional instalado em Versalhes.  A burguesia francesa, que havia engordado durante o Império de Napoleão III (1852-1870), depois de jogar o país em um conflito contra o poderoso Estado prussiano, agora suplicava ao povo de Paris que se entregasse sem resistência às tropas invasoras. O ato da Guarda Nacional foi a faísca que fez explodir pelos bairros operários da capital francesa toda ordem de reivindicações acumuladas durante os anos de prosperidade das altas finanças no Segundo Império, ou desde a humilhante traição dos liberais durante as jornadas de junho de 1848, chegando mesmo a colocar em primeiro plano questões pendentes desde a Conjuração dos Iguais de 1796. Dessa explosão também surgiu o futuro: pela primeira vez foi colocado sobre a mesa da história a possibilidade concreta de superação do capitalismo por um governo dos trabalhadores para os trabalhadores. Para Marx, a experiência da Comuna foi paradigmática. Nas palavras do revolucionário alemão, escritas no calor do momento, a Comuna havia sido “a forma política, por fim descoberta, para se levar a cabo a emancipação econômica do trabalho”. Já Engels, passados vinte anos daqueles eventos, dizia: “Pois bem, senhores, quereis saber como é esta ditadura [do proletariado]? Olhai para a Comuna de Paris. Tal foi a ditadura do proletariado”.

O que gabarita a Comuna a ser entendida como a primeira revolução proletária da história? Em seus decretos e declarações a Comuna afirmou o seu conteúdo totalmente popular, sem nenhum tipo de compromisso com as classes dominantes e as armas de sua dominação: o Estado e a propriedade privada. Era um governo dos trabalhadores e para os trabalhadores – de todas as partes do mundo. Segundo um manifesto de 12 de abril de 1871 assinado por um grupo de mulheres, “Nossos inimigos são os privilegiados da ordem social presente, todos aqueles que sempre viveram de nosso suor, que sempre engordaram com a nossa miséria. Eles viram o povo se levantar, gritando: – Nenhum dever sem direito, nenhum direito sem dever! – Desejamos o trabalho, mas para guardar o produto dele! – Chega de exploradores, chega de senhores – O trabalho e o bem-estar para todos, o governo do povo por si mesmo, viver livre trabalhando ou morrer combatendo!”[1].

O fim da União Soviética e do Estado de Bem-Estar Social no centro capitalista não só não significou o fim da história, como recobriu de atualidade uma série de demandas feitas pelos communards[2], como a defesa do ensino público gratuito e laico, condições de trabalho e salários dignos, o fim do endividamento dos mais pobres, o cuidado aos desamparados, o controle pelos trabalhadores das fábricas etc.

Engane-se quem acredita que o levante de março de 1871 tenha sentido apenas no contexto europeu. O caráter – ou perigo – universal de sua mensagem, no entanto, pode ser identificado bem longe daquela Europa que iniciava mais uma acelerada rodada de desenvolvimento industrial.  No dia 26 de junho de 1871, passados já um mês do massacre dos communards conhecido como “A Semana Sangrenta”, o Senado do Império do Brasil iniciou uma discussão que duraria quatro dias em torno da aprovação de uma “moção de horror” em relação ao ocorrido na França. A nota dizia que o Senado brasileiro manifestava o “(…) sentimento de horror contra a anarquia que acaba de destruir a mais bela parte da grande capital da França; congratulando-se pela vitória da causa da civilização e dos princípios do cristianismo”. O que poderia ser entendido como um cripto-viralatismo das elites brasileiras, era, na verdade, o medo de um levante pela emancipação dos trabalhadores e pelo fim da propriedade privada. Uma combinação explosiva para as elites do maior país escravagista do mundo.

A Comuna nasceu, viveu e morreu justamente no momento em que nossa elite se via mais uma vez envolvida em um conchavo antipopular. Como nos aponta Emília Viotti, ao longo da década de 1860, o movimento abolicionista ganhou ímpeto no Brasil. A defesa da libertação dos escravos levou à organização de grêmios, clubes, associações abolicionistas e jornais, chegando a se transformar no fim daquela década em bandeira até mesmo de alguns setores das elites. À pauta de reivindicações já há muito tempo defendida por setores reformistas dos dois partidos políticos que dominavam a política do período – Conservadores e Liberais -, como o fim do Poder Moderador e as eleições diretas, somou-se a da “emancipação do elemento servil”. Foi neste contexto que um gabinete conservador, liderado pelo visconde do Rio Branco, apresentou em 12 de maio de 1871 um projeto para a libertação dos filhos de mães escravas e que levou a discussão sobre a abolição ao centro do debate público no país.

Apesar do claro intuito do visconde de Rio Branco de aprovar um projeto tímido de abolição – e que posteriormente se demonstrou completamente ineficaz – para evitar uma maior radicalização do movimento abolicionista, houve uma ferrenha oposição por parte dos proprietários de escravos à lei. O centro da argumentação destes grupos, além da alegada ruína econômica que a libertação dos escravos provocaria, afetando a “indústria número um do país” – já naquele tempo e até hoje, a saber, o setor agroexportador-, era a defesa da inviolabilidade da propriedade privada.

Em uma reunião de “lavradores” realizada no extinto município fluminense de São João do Príncipe em junho de 1871, por exemplo, o senhor doutor Rocha Vianna, que dizia ser ele mesmo um “democrata republicano”, após evocar o parágrafo 22 do artigo 179 da Constituição de 1824 (“É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude”), afirmava: “os conservadores ou adeptos do governo pessoal [monarquia] apelidam os republicanos de anarquistas e revolucionários, entretanto eles são os próprios soldados da anarquia comunista”[3]. O “ataque à propriedade” representado pela emancipação dos filhos dos escravos passou a engrossar o incipiente repertório do anticomunismo brasileiro[4]. No entanto, a suposta ameaça tinha agora uma dimensão concreta: a Comuna de Paris.

Em 31 de maio de 1871, por exemplo, o Senador Jerônimo Martiniano Figueira afirmou no Senado que lhe espantava a radicalidade do projeto do visconde de Rio Branco e sustentou que este movimento precipitado poderia tirar a razão de ser do Partido Conservador, levando ao fim de todos os outros partidos e, assim, “(…) não terá a sociedade outro governo senão o governo da anarquia, da Comuna de Paris”[5]. Em um texto anônimo publicado em junho daquele ano, afirmava-se que “Em qualquer país do mundo, exceção feita à triste e infeliz Comuna de Paris, nenhum governo ousaria tanto”[6]. No mês seguinte, uma petição assinada em nome dos “lavradores de Pirahy”, afirmava que “nos campos, nos distritos agrícolas, uníssona repele a garantia aos direitos de propriedade que lhe oferece a proposta. Dos erros semelhantes nasceu a Comuna de Paris”[7].  Para um certo W. Trils, em um texto intitulado “A Comuna do Brasil”, o projeto de lei tornava “O governo e seus amigos piores que os comunistas franceses”. Para o autor, “A comuna de Paris assombrou o mundo com os seus horrendos crimes; queria extorquir para dividir; bem longe estava de reconhecer o direito de propriedade. ‘A propriedade é um roubo’. Era para comuna este princípio acariciado. A comuna do Brasil desconhece no seu projeto o direito da propriedade, e chega a ostentar em pleno parlamento que o escravo não constitui esse direito! Aquela foi punida. Esta será tolerada?”[8].

Em defesa da moção citada acima, o visconde de São Vicente afirmava que “(…) não tratamos de uma conquista e de devastações de mão estrangeira ou do furor de um louco (…) não tratamos de uma luta de opiniões políticas, nem de um partido que mereça essa denominação. Tratamos sim de uma facção tenebrosa que ameaçou a humanidade inteira, a todas as nações civilizadas; de uma facção que declarou guerra à propriedade particular e pública”. Concluía o Senador, questionando o quanto “(…) terão os discursos proferidos nas reuniões, nos meetings, nos clubes populares” contribuído para o que ocorreu em Paris. Para o visconde, “(…) Fanatizaram as imaginações brutas, criaram o fanatismo e o desespero, e depois os próprios homens que acumularam esses materiais de incêndio não puderam mais dominá-lo”[9].

Que algo próximo à Comuna de Paris estivesse próximo de acontecer em nosso país é completamente esdrúxulo. Como afirmou o senador Silveira da Motta em resposta ao visconde, “Hoje chama-se a tudo radicalismo para condenar o espírito reformista das instituições, e aponta-se com o dedo para a comuna de Paris (…) Entretanto, Sr. Presidente, os homens que assim procedem (…) são os mesmos que têm oferecido ao Império brasileiro ocasião até para uma espécie de conflagração”[10]. A ameaça representada pela Comuna e seu aparelhamento pelo movimento contrarrevolucionário preventivo das elites brasileiras servem de observatório privilegiado para entendermos historicamente o que há de permanente nessa contrarrevolução e em seu ideal anti-comunista. Por fim, não devemos esquecer que se as bandeiras communards ainda são atuais, isso é porque nossos inimigos ainda são os mesmos.

 

[1] Apud.  V.A., A Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Editora Laemmert, 1968, p.76.

[2] Communards é o termo pelo qual as trabalhadoras e trabalhadores que aderiram e defenderam a Comuna de Paris eram chamados.

[3] Diário do Rio de Janeiro, 18/06/1871, p. 2.

[4] Ayres, Vivian N. “Marx e o comunismo nos periódicos paulistas do século XIX”, Mouro, n. 13, São Paulo, janeiro de 2019, p. 187 e Secco, Lincoln. “O anticomunismo preventivo”, publicado no site https://aterraeredonda.com.br/o-anticomunismo-preventivo/#_edn2

[5] Diário do Rio de Janeiro, 31/05/1871, p. 2.

[6] Diário do Rio de Janeiro, 11/06/1871. p. 2.

[7] Diário do Rio de Janeiro, 15/06/1874, p. 1.

[8] Diário do Rido de Janeiro, 07/07/1871, p. 2.

[9] Diário do Rio de Janeiro, 30/06/1871, p. 1.

[10] Ibidem.