Bicentenário 1822-2022: duzentos anos de luta pela independência
Por: Centro Sérgio Buarque de Holanda – Documentação e Memória Política1
O marco oficial dos duzentos anos de independência do Brasil, celebrado em 07 de setembro de 2022, coloca em evidência a relação entre história, memória, política, e nos impõe a necessária crítica sobre interpretações do passado e projetos que queremos construir para nosso futuro embasado nessa fundamental reflexão.
A independência ocorrida há 200 anos manteve o regime monárquico e a escravidão, que colocava parcela significativa da população à margem da nação então fundada. Estes elementos, vistos à luz das questões que o país precisa enfrentar atualmente, remetem ao debate sobre o colonialismo e neocolonialismo, a oligarquização da política no país e a desigualdade que caracteriza toda a sua trajetória até o presente, tendo o racismo como questão estruturante na formação do Estado nacional brasileiro. O debate sobre a independência inclui, também, a discussão sobre o qual o padrão de desenvolvimento adotado até aqui e o que se pretende construir com vistas à soberania nacional.
História, memória e política são complementares no processo de mobilização social pelo combate às injustiças factualmente construídas no Brasil. Em um passado historicamente cindido em classes e raças, a disputa simbólica da memória evidencia a desigualdade do presente. Vemos, por meio desse processo, a maneira pelo qual se foi edificando politicamente a estrutura de uma nação desigual, racista e classista.
Dessa maneira, no momento em que se comemora os duzentos anos da independência brasileira, um processo pactuado entre as elites que excluiu homens e mulheres negros e negras, ainda submetidos ao atroz regime escravista, e outra parcela da população pobre que aqui vivia, instigamos o debate a partir da perspectiva dos trabalhadores. A trajetória de conflitos permanentes entre os grupos subalternos e as elites nacionais evidencia o contexto de exploração da população e também dos recursos naturais e do território, ferindo o que entendemos como um projeto de soberania nacional ao longo de nossa história.
Este ano, em que se celebra oficialmente os duzentos anos de independência, é também o ano da disputa eleitoral para presidência, num contexto em que o atual governo opera pela destruição da nação em diversos aspectos, como as privatizações, desmatamento e ataque ao meio ambiente, abandono de equipamentos e políticas públicas. As ações governamentais da atualidade, assim como no passado, optam por um projeto de exploração dos recursos naturais e da população que mais uma vez fica excluída de um projeto soberano de nação. Todos esses elementos apontam para a necessária discussão sobre soberania nacional que auxilie na construção de uma verdadeira independência pautada em justiça, direitos, igualdade, enfrentamento da pobreza, participação política, entre tantas outras garantias que trarão qualidade de vida e dignidade para a população brasileira.
A soberania nacional está intrinsecamente ligada à questão do que entendemos por nação, como ela se forma, se estrutura e qual seu papel. A nosso ver, ela sempre se forma ligada a seu povo, conjunto de homens e mulheres que a compõem e dão continuidade à sua história e sentido de existência. Por essa razão, ao se levar em conta o que é soberania em um país verdadeiramente independente, o primeiro aspecto que deve ser intrínseco ao conceito de uma nação é a necessária soberania do povo. Ao se discutir o que nos torna e nos tornará em uma nação independente e soberana devemos levar em consideração a história do povo que constitui e dá vida a nação.
É nessa esteira que encontramos as falhas e contradições que marcam o processo de independência brasileira. Ele se deu em 07 de setembro de 1822 com a nação sujeita ao brutal processo de escravidão de homens e mulheres negras e negros. Era o escravismo que caracterizava a sociedade e definia os rumos econômicos e culturais do país. Esse fato marca de maneira profunda a história e o povo brasileiro até os dias atuais, e, por essa razão, se faz profundamente necessário debatermos, apontarmos e corrigirmos as distorções sociais, econômicas e culturais oriundas desse horrendo processo que estrutura o racismo e as injustiças contra a população negra.
Em nosso país a nossa nacionalidade é caracterizada, sobretudo, pela questão da escravidão e do colonialismo. Fomos marcados não só pra escravização de negros e negras trazidos do continente africano, mas também pela expoliação dos povos indígenas. Essa característica faz do povo brasileiro uma população majoritariamente mestiça. Somos a segunda maior nação africana fora da África do mundo. Expostos em números, foram trazidos de forma forçada aproximadamente cinco milhões de negros e negras para o Brasil, fora a normal reprodução da população. Tivemos quase 400 anos do brutal processo de escravidão. Se partirmos de 1500, momento em que se começa a exploração colonial, somente 388 anos depois é que foi instituída a Lei Áurea, marco oficial que exigiu o fim da escravidão. Partindo da independência, oficialmente marcada em 1822, foram 66 anos de um país “independente” que possuía homens e mulheres cativos, marcados pela falta de soberania, humanidade e dignidade, à margem do desenvolvimento social. É necessário considerar ainda, que a Lei Áurea é simplesmente a abolição formal da escravidão, porque na medida em que não se distribui terras e se repara econômica, cultural e socialmente esse profundo processo de exclusão e marginalização, não se tem de fato um processo de inserção dessas populações à vida digna. Pelo contrário, é sabido da precariedade e barbaridades que continuaram marcando a população negra no pós Lei Áurea. É nesse cenário de injustiça, desigualdade e exclusão que se forja a proclamada Primeira República brasileira oriunda do processo de independência, e que é a base de toda opressão que ainda vivemos.
Por essa razão, no momento em que discutimos e é celebrado pelos veículos oficiais os duzentos anos do processo de independência brasileira, temos que discutir seu real significado e a questão da soberania nacional. E essa, como afirmamos de início, é constituída fundamentalmente por seu povo, pelos homens e mulheres que compõem uma nação. Esse fato nos obriga olhar para a estrutura da sociedade brasileira e ver que ela possui raízes escravocratas, formada imensamente por homens e mulheres negros e negras.
Por ter sido um processo injusto e excludente, que manteve parcela significativa da sociedade a margem da distribuição da riqueza e participação política, hoje vivenciamos um cruel processo de violência social e econômica que recai, marca e segrega a população negra. A violência a que está submetida essa população é a violência da escravidão. Ela está no DNA do sistema de classes do Brasil, erigida em um sistema excludente. O legado dessa violência e exclusão é também o integralismo, a ditadura militar, o autoritarismo, o atual neofascismo. A herança é o ódio e violência contra cidadãos negros e negras no Brasil. Associada a essa violência, que atinge todos os pobres desse país, está a forma pela qual historicamente o neoliberalismo é traduzido para os nossos costumes, para nossa sociedade. Aqui, ele coaduna-se com o passado escravocrata, gerador de contradições, exclusões e marginalizações e intensifica a desigualdade social, o racismo, o elitismo.
Por essa razão é que entendemos a questão racial no Brasil para além da pauta identitária, é uma questão que diz respeito à soberania nacional. Refere-se à parte mais profunda, a raiz maior da nossa nacionalidade. Se não entendermos e enfrentarmos os efeitos desse processo não entenderemos o que é o marco distintivo do nosso país. O primeiro aspecto que fará de nós uma nação independente e soberana tem a ver com a questão negra, com o enfrentamento do escravismo e luta contra o racismo. Sem esse olhar histórico continuaremos presos ao passado, a um passado desumano, que atentou contra a soberania de milhares de homens, mulheres e crianças, e que continua marcando a população.
Outro aspecto que tange nossa soberania é a necessidade de preservação do meio ambiente. Vivemos um absoluto descaso e insensibilidade em relação à questão ambiental por parte de nosso governo e das elites brasileiras, que vivem da exploração intensiva dos nossos recursos naturais. Temos que combater e ter políticas sérias para coibir, proibir e fiscalizar o desmatamento que está em curso. No atual governo houve um retrocesso de grandes proporções e que é fundamental romper. O famoso “combo da morte” tramitado no Congresso Nacional que pretende acabar com o licenciamento ambiental, instaurar a grilagem como prática legal e ainda conceder anistia para aqueles que cometem crimes ambientais é um exemplo da abominável falta de política e fiscalização ambiental. Além desse, o Projeto de Lei nº 191 sobre a demarcação das terras indígenas, o PL nº 6299 que permite o uso de agrotóxicos e o PL nº 5544 que libera a caça esportiva ameaçando os animais silvestres, compõem o atroz descaso com nosso patrimônio ambiental nacional. Fere, portanto, mais uma vez nossa soberania, pois impacta a qualidade de vida da população e meio ambiente em nome de uma cultura colonial da exploração dos recursos naturais em nome do lucro.
Por fim, mais um elemento que fere nossa soberania e que deve ser debatido no contexto do bicentenário da independência, em que discutimos qual projeto de país queremos para nossa sociedade, devemos nos posicionar sobre a privatização das empresas públicas. Como exemplo, temos o esquartejamento da Petrobrás que está sendo aos poucos privatizada, tendo suas partes paulatinamente vendidas. O atrelamento do preço dos combustíveis ao preço internacional é um reflexo desse ciclo de pequenas privatizações. Outro exemplo escandaloso é a Eletrobrás, inicialmente avaliada por um valor irrisório em relação não só ao que a empresa realmente vale, mas do valor inestimável como bem e patrimônio público no setor elétrico.
Ao contrário das celebrações oficiais ufanistas que desconsideram o histórico de luta da classe trabalhadora, sua luta por organização e resistência, e que se apresenta como um processo homogêneo, apaziguado, vindo como benesse de uma elite política e econômica para o povo brasileiro, o bicentenário se constitui como um processo de duzentos anos de luta por uma verdadeira independência. Por essa razão se faz fundamental e urgente outro projeto de futuro que traga soberania para homens e mulheres brasileiras, um novo padrão de desenvolvimento que integre e incorpore a todos, rompendo com essa lógica elitista que agrava a desigualdade social e aparta a população da vida pública. Uma nação verdadeiramente soberana deve ser capaz de lutar contra a estrutura escravista, racista, colonialista e exploratória trazendo dignidade, igualdade, justiça, direitos, e qualidade de vida para todos. É esse alicerce de soberania nacional que queremos para o Brasil.
1 A construção desse texto pautou-se nas discussões realizadas pelas mesas de debate do “Bicentenário 1822-2022: duzentos anos de luta pela independência” realizada pelo Centro Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Perseu Abramo ao longo de 2022. As mesas estão disponíveis em: https://dev.fpabramo.org.br/csbh/bicentenario/>.