Série no Globoplay, “Extremistas.BR” mergulha fundo nos radicais de direita, mostrando a organização e como estão ameaçando os fundamentos da democracia ao pregarem o caos como discurso

EXPLOSÃO DA VIOLÊNCIA Em 8 de janeiro, radicais tomaram a Praça dos Três Poderes e quebraram tudo

Se há uma certeza ao zapear pelos diversos serviços de streamings que agora povoam nossa programação no lugar da grade televisiva, é a de que o público se interessa, cada vez mais, por séries do gênero true crime. Seja ficção ou documentário. O gênero tomou conta do catálogo de diversos serviços por assinatura, e o que não falta no Brasil é inspiração.

A maior delas, nos últimos anos, pode-se dizer, é o bolsonarismo. Trata-se um thriller político que conta com ardilosos jogos de poder e uma máquina de ódio e desinformação. É esse true crime que inspira a minissérie documental “Extremistas.BR”, produzida pela Globoplay, que se infiltrou no submundo da extrema-direita por dois anos, até os eventos centrais de 8 de janeiro.

O diretor da série, Caio Cavechini, aborda a fundo o negacionismo como propaganda política, o armamentismo, o aparelhamento violento das igrejas neopentecostais e a engenharia de algoritmos que alavancou o discurso de ódio nas redes de disseminação de notícias falsas. Além da estrutura que se desvela, que financia e produz toda a rede do ódio que impulsionou Bolsonaro desde 2018, o documentário traça um perfil triste dos que mordem a isca e perdem a vida para a automação bolsonarista-militarizada. Não são as vítimas, é claro, mas o efeito da captura é devastador.

Uma senhora, que é fio condutor de parte da narrativa e permitiu que as câmeras a acompanhassem até mesmo no acampamento em frente ao QG do Exército em Brasília, chegou a se fantasiar da ministra do STF, Carmen Lucia. Tudo para “manifestar contra o Supremo” na Av. Paulista, em São Paulo. Ali, proferiu impropérios: “você vai virar comida de chinês”.

Não escapou a ela nem quem passava apenas, ou a criticava. Em dado momento, já no acampamento, em janeiro deste ano, avisa ao cinegrafista: “Se você não tiver acompanhado comigo, você vai apanhar, porque o pessoal hoje está para a guerra, viu?”.

Em uma das cenas mais impressionantes, para quem analisa o fenômeno à luz dos estudos sociais, ela se descreve ao fazer uma crítica social. Fala da tristeza de ver pessoas aprisionadas por um sistema político que captura mentes e transforma as pessoas em robôs. E, explica, por isso mesmo, ela aposentou a televisão. Só assiste a canais no YouTube. Para mostrar erudição, cita criminosos como Rodrigo Constantino, Allan dos Santos e, especialmente, Bárbara Estefani, conhecida como “Te Atualizei”. Todos tiveram perfis derrubados por incitar o golpe e promover a mentira. A senhora obviamente se referia a militantes da esquerda, atacados o tempo todo em sua luta contra o “comunismo brasileiro”. Mas descrevia a si mesma.

Outro ponto alto da produção é a interação entre uma infiltrada nos grupos de extrema-direita que conseguiu chegar ao “alto escalão” do golpismo, com a personagem de codinome Cecília. Esta era uma conta falsa que criou para se embrenhar pelos porões do gabinete do ódio.

A infiltrada chegou a trocar mensagens com Allan dos Santos, um dos mentores do golpismo. Cecília testemunhou nos grupos em que fez parte (ela já foi descoberta e não existe mais) como se davam as reuniões para incentivar atos golpistas e pautas antidemocráticas, como a negação da eleição de Lula, a ideia de fraude eleitoral e os pedidos de intervenção militar. Tudo resultaria em um golpe de Estado.

Em depoimentos anônimos, operadores da máquina extremista deram testemunhos à equipe do documentário, detalhando mecanismos de operação do famoso Gabinete do Ódio, com histórias de quem se mantém oculto no front digital.

Um deles explica como fez da desinformação meio de vida, ao produzir notícias falsas e promover destruição de reputações e instituições, a exemplo do que aconteceu com o então candidato do PT à Presidência Fernando Haddad, em 2018. O petista foi vítima da absurda história das mamadeiras com bico em formato de pênis.

Tudo vinha de baixo, mas era endossado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, que financiava e monetizou uma verdadeira indústria. “A gente trabalha o ódio, narrativa de ódio”, diz um dos entrevistados, que não é identificado. “Cada vez menos espaço para o debate real”. O resultado de toda essa massa de bolo que cresceu ao longo dos anos, o Brasil viu em 8 de janeiro, quando extremistas destruíram as sedes dos três poderes, em Brasília, na tentativa de um golpe.

“Extremistas.BR” também ouve especialistas e cientistas sociais para buscar entender e mostrar como o extremismo tomou conta da direita brasileira. São pesquisadores que se dedicam a estudar e monitorar o comportamento de manada.

Nos episódios, também surgem personagens em primeiro plano conhecidos, como Sarah Winter, que explica as razões de ter se afastado do bolsonarismo, mas mantém sua radicalização à direita. E também o deputado André Janones (Avante-MG), que explica sua tática de guerrilha nas últimas eleições para fazer frente ao forte esquema guiado e financiado pelos bolsonaristas. Ele avalia que isso foi fundamental no trabalho da campanha do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva.

O trabalho de contraponto também é destaque. Além de Janones, os donos do perfil Sleep Giants Brasil foram entrevistados pelo documentário. Eles criaram o projeto de forma anônima para combater a monetização de canais e emissoras que patrocinavam o golpismo bolsonarista, como a Jovem Pan, Rodrigo Constantino, o falecido Olavo de Carvalho, o apresentador Sikêra Junior, dentre outros nomes perigosos.

Os dois foram perseguidos e tiveram suas identidades reveladas. Ao conseguirem engajamento suficiente para retirada de patrocínio e queda da monetização de alguns canais no YouTube, a dupla incomodou gente grande.

Longe de ser definitiva, a produção é um começo no rastro a ser perseguido para investigar e estudar o que aconteceu e ainda segue em curso no Brasil, a exemplo de outros países em que a extrema-direita tem dominado o uso de ferramentas eletrônicas de forma criminosa.

No caso específico do Brasil, temos o agravante da promoção das Forças Armadas e Polícias Militares como agentes políticos ou a serviço da política e a instrumentalização moral promovida pela religião. A imersão de “Extremistas.BR” apresenta a organização, a forma e alguns nomes, alertando para o risco. Não podemos nos esquecer que o buraco pode ser sempre mais fundo. A inteligência artificial está aí, chegou para ficar e pode aprofundar a crise se não for tratada com seriedade. •

“Extremistas.BR”

Onde assistir: Globoplay

Direção: Caio Cavechini

Roteiro: Caio Cavechini, Carol Pires, Carlos Juliano Barros