Isaías Dale

O rumo imaginado para o futuro da educação no Brasil, ao menos para a maioria dos segmentos que participaram da Conferência Nacional de Educação 2024 (Conae), passa pelos seguintes pontos:

– revogação do chamado Novo Ensino Médio, sendo substituído pelo novo modelo que tramita no Congresso, com base nos projetos de lei 2601 e 5230, ambos de 2023;

– revogação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e substituição por um novo projeto curricular a ser construído;

– revogação da Base Nacional Comum para Formação de Professores da Educação Básica, sendo substituída pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para as Licenciaturas; 

– universalização da pré-escola a partir dos quatro anos de idade, do Ensino Fundamental com ciclo de nove anos e garantia de educação para toda a população até 17 anos;

– triplicar matrículas da educação profissionalizante no Ensino Médio;

– educação de tempo integral, de sete horas diárias, para pelo menos 50% dos estudantes;

– padrões de qualidade para a educação a distância;

– implantação efetiva do custo aluno-qualidade, parâmetro mínimo a ser investido considerando o critério de qualidade de ensino e não o orçamento disponível;

– investimento de 10% do PIB em educação.

Estas medidas compõem o conjunto de resoluções aprovadas pela Conae 2024 em sua etapa nacional, realizada entre os dias 28 e 30 de janeiro, em Brasília. Algumas delas demandam iniciativa imediata, como a revogação do modelo de ensino médio aprovado pela gestão de Michel Temer, o ex-vice que virou presidente após o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016.

Aquele plano continua em vigor, e tem sido criticado pelas entidades de professores e estudantes desde antes de sua aprovação pelo Congresso, em 2017. O governo Lula já encaminhou, em dezembro do ano passado, um projeto de lei para substituí-lo, o de número 5230. 

No entanto, as entidades que participaram da Conae 2024 acreditam que o projeto do Executivo pode e deve ser aperfeiçoado, com a inclusão de propostas contidas no PL 2601, apresentado em maio do ano passado pelo deputado João Carlos Bacelar Batista (PV-BA), com apoio de entidades que compõem o Fórum Nacional de Educação (FNE), organizador da Conae.

Há frequentes críticas ao modelo idealizado pela gestão Temer, como a de que o currículo constrói um ensino voltado principalmente à simples formação de mão-de-obra técnica para o mercado de trabalho, com a diminuição do tempo para o estudo de ciências humanas. Outro problema apontado é a adoção de disciplinas optativas sem que os estudantes tenham sido preparados para uma escolha refletida, o que pode levar muitos a decidirem entre distinções imaginárias como disciplina “chata” em contraposição a disciplina “fácil” ou “inútil” a “prática”.

Outro velho problema tem acompanhado o Novo Ensino Médio em estados e municípios: a falta de preparação específica para educadores lidarem com mudança de tal monta e falta de professores contratados para lecionar algumas das disciplinas.

Neste ponto, o da formação continuada dos educadores, a Conae 2024 propõe igualmente uma mudança radical. Com a revogação das atuais bases curriculares, inclusive para os cursos voltados a professores e professoras, a conferência reivindica a criação de algo novo. Uma das alternativas já está colocada. As Diretrizes Curriculares Nacionais para as Licenciaturas foram elaboradas a várias mãos no âmbito do Conselho Nacional de Educação.

Aqui, outro ponto importante a se considerar quando se fala em conferências nacionais, e não apenas na Conae 2024. Resoluções e propostas dos organismos de controle e participação social, como conselhos e conferências, têm grande dependência do Executivo para se tornarem realidade. Os governos Temer e Bolsonaro dedicaram desprezo absoluto a essas diretrizes curriculares, propostas em 2002 e agora recolocadas na mesa como reivindicação.

O presidente Lula, presente à Conae, em cerimônia realizada no dia 30 de janeiro, garantiu que seu governo tratará com respeito e atenção as propostas saídas da conferência. Essas propostas foram entregues ao Executivo, com a intenção de influenciar a elaboração do projeto de lei do Plano Nacional de Educação (PNE) 2024-2034. As disputas em torno do PNE vão envolver também o Legislativo, onde se dá a articulação de todos os setores, inclusive a extrema-direita e os defensores da primazia do ensino privado sobre o público.

Em seu discurso, Lula definiu: “O que nós precisamos é ter competência e habilidade para conversar com aqueles que nós não gostamos e com aqueles que não gostam de nós, para que a gente possa convencê-los a votar nas coisas que nós queremos”.  O presidente respondia à palavra de ordem pela revogação do modelo de ensino médio, cuja substituição depende de votos no Congresso.

Lula sugeriu mobilização em torno das propostas, mas com realismo. “Temos que cobrar do governo que elegemos, mas sempre cobrar de olho na realidade, porque, quando pedimos mais dinheiro para alguma coisa, tem duas formas de a gente ter: ou a receita cresce ou nós temos que tirar de uma área para colocar em outra”. Em 2022, segundo pesquisa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o Brasil investiu 5% do PIB em educação pública, contra os 10% defendidos pela Conae.

Também presente à cerimônia, o ministro da Educação, Camilo Santana (PT-CE) enunciou medidas já concretizadas pelo atual governo. O ministro afirmou que o aumento do orçamento do MEC será 30% maior do que ao de 2022, o que permitirá, entre outros avanços, a criação de 100 novos institutos federais no Brasil e a expansão das universidades. Camilo Santana anunciou que, ainda neste ano, todo estudante indígena que não reside nas moradias das universidades terá acesso a bolsa permanência. “Nós queremos o PNE [Plano Nacional de Educação] da equidade no Brasil, para acabar com as diferenças entre pobres e ricos, negros e brancos, para dar oportunidade a todos”.

Antes de discursar, o ministro havia sido recebido pela plateia aos gritos de “Fora, Lemann”, em referência ao instituto de mesmo nome que atua na educação privada e defende o modelo de ensino médio hoje em vigor na rede pública.

Mas nem só de protestos da esquerda se fez a Conae 2024. Numa estratégia pouco comum quando o assunto são conferências nacionais, a direita e a extrema direita se articularam para participar dos debates e das votações em Brasília. No entanto, o fizeram com atraso.  As etapas municipais e estaduais, realizadas entre outubro e dezembro do ano passado, foram os momentos de construção das propostas que compuseram o documento da etapa nacional. 

Outra razão para o descompasso da reação pode ter sido o fato de a própria conferência e o Fórum Nacional de Educação, que a organiza, terem sido quase extintos a partir do governo Temer. No Fórum, por exemplo, intervenção daquele governo colocou apenas defensores do projeto oficial nos cargos. 

Enquanto isso, as alas esquerda e progressista que militam na Educação permaneceram mobilizadas, ainda que fora dos espaços oficiais, e tiveram rapidez para ocupar as etapas preparatórias da Conae, que foi retomada graças a decreto do governo Lula. Nada garante, no entanto, que na próxima oportunidade a direita não passe pela prova com nota suficiente.

Retranca

Direita avança nas conferências e conselhos 

Para o pesquisador Daniel Avelino, doutor em Política Social pela UnB (Universidade de Brasília), a ideia de que as conferências nacionais e os conselhos seriam um terreno seguro para a atuação dos movimentos sociais está mudando. Um forte exemplo disso é a crescente participação – e vitórias – da direita nos processos eleitorais dos conselhos tutelares, no ano passado.

Mais recente, outro exemplo é a própria Conferência Nacional de Educação 2024 (Conae), atacada por setores de extrema direita que tentaram, inclusive, suspender sua realização por força de ação judicial. Esses setores pretendiam combater o que chamam genericamente de ideologia de gênero nas escolas e defender propostas como o homeschooling (ensino em casa).  Mesmo em menor número, alguns de seus representantes participaram da etapa nacional. No entanto, as propostas em debate naquela etapa já haviam sido encaminhadas pelas etapas municipais e estaduais, não cabendo novas inclusões.

Avelino, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), dedica-se há anos a acompanhar os encaminhamentos das conferências e seus desdobramentos práticos. Em sua opinião, a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, marca a crescente hegemonia da esquerda nesses espaços. 

“A composição dos participantes muda radicalmente e, com isso, a agenda fica dominada por temas ligados à saúde pública e atendimento à população, pautas que hoje identificamos como de esquerda”, recorda. Daquela conferência, saíram propostas que seriam apresentadas à Assembleia Constituinte e, depois, dariam forma ao SUS.

A partir dali, avalia o pesquisador, os grupos de direita optaram por estar ausentes nesses espaços. “Mas hoje, com a tentativa de a direita ocupar as conferências, há uma crise de identidade. Mas seria legítimo pensar que esses grupos estão errados? Se o espaço é democrático, a presença deveria ser vista como benvinda”, comenta.

A presença da direita foi observada também na 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em dezembro do ano passado, quando temas como a defesa das comunidades terapêuticas foi a voto na plenária final. Apesar de o Conselho Nacional de Saúde, organizador do encontro, ser frontalmente contrário à ideia.  No entanto, a redação das propostas pró-comunidades terapêuticas conseguiu, habilmente, não fazer menção direta a elas. Apesar do estratagema, as propostas foram derrotadas.

Levantamento do professor Leonardo Avritzer, da Universidade Federal de Minas Gerais, outro estudioso do tema conferências, aponta que 31% dos participantes da 13ª Conferência Nacional de Assistência Social, também realizada em dezembro, se identificaram como de centro ou de direita. 

Para Avelino, uma possibilidade para o futuro seria os grupos ideológicos realizarem suas próprias conferências, o que exigiria maior coesão na formulação de propostas, para posterior disputa em espaços a serem criados pelo governo. “Os espaços ideológicos seriam mais coesos, e de lá as organizações que os compõem saíram com tarefas de mobilização e disputa muito bem definidas para validar suas reivindicações. Tudo com uma estratégia comum”, comenta. “As conferências atuais se esgotam quando as propostas são apresentadas”, diz ele. 

Isso acontece em grande parte, segundo o pesquisador, porque o horizonte dos proponentes é o Poder Executivo. “É mais eficiente fazer a pauta transitar pelo Legislativo e pelo Judiciário. E a direita já faz isso”, complementa.