Diferentes depoimentos prestados à Polícia Federal (PF) confirmam a existência de uma trama golpista no alto escalão do governo passado, e ao menos dois, dos ex-comandantes do Exército, Marco Antonio Freire Gomes, e da Aeronáutica, Carlos Almeida Baptista Júnior, colocam o ex-presidente Jair Bolsonaro no centro das conspirações

Bolsonaro está irremediavelmente ligado à trama golpista que pretendia romper o ciclo democrático brasileiro, desrespeitar a decisão das urnas que elegeu Lula presidente e estabelecer um regime de vingança, movido por seu caráter amedrontado, persecutório e avesso ao trabalho sério e árduo.

A esta altura, a opinião pública já sabe disso, embora alguns teimem em criar teses fantasiosas para justificar a tentativa de golpe de Estado que o ex-presidente imaginou.

Na última sexta-feira, Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal, divulgou termos de depoimentos que fazem parte da investigação da Polícia Federal sobre a tentativa de golpe. Com bastante nitidez, os documentos colocam Bolsonaro como o mentor da trama contra a democracia, numa série de atos criminosos previstos pela legislação brasileira.

RECUOU – Freire Gomes, ex-comandante do Exército, disse ter ameaçado o chefe de prisão caso insistisse com a ideia do golpe

Dois desses depoimentos são cruciais, por terem sido prestados por comandantes das Forças Armadas que alegam ter se recusado a aderir ao golpe em gestação e alertado o ex-presidente da ilegalidade do plano. Os depoimentos relatam episódios situados entre novembro e dezembro de 2022, quando as urnas já haviam consagrado Lula como novo presidente do Brasil.

Naquele momento, Bolsonaro estava assustado, conforme relatou o então comandante da Aeronáutica, Carlos Almeida Baptista Jr em depoimento, cuja versão escrita pela Polícia Federal passou a circular no último dia 15. Outro comandante a ratificar a séria acusação de que o ex-presidente não só queria o golpe, mas coordenou pessoalmente a confecção da minuta do golpe e pressionou militares e ministros a aderir e apoiar, foi Marco Antonio Freire Gomes, que à época comandava o Exército.

No depoimento de Freire Gomes, um toque dramático, com tons humilhantes para Bolsonaro: o então comandante das forças terrestres disse que prenderia o chefe, já derrotado nas urnas, caso insistisse na marcha do golpe de Estado.

Fio da meada

A chamada minuta do golpe, encontrada, ano passado, no celular do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel mauro Cid, foi o fio da meada para que os depoimentos divulgados por Moraes pudessem ser colhidos com método investigativo, que inclui uma linha do tempo – bastante presente nos documentos da PF – de reuniões entre os depoentes, o ex-presidente e alguns dos cúmplices de Bolsonaro, que a partir de agora também sentem o cheiro de batata assando.

Os depoimentos citam os envolvidos e o conteúdo das conversas, em reuniões mantidas no gabinete do ex-presidente, em sua residência oficial e até em ocasiões inusitadas, como a formatura no Instituto Tecnológico da Aeronáutica, em São José dos Campos (SP). No dia 16 de dezembro de 2022, Baptista Júnior, que acompanhava a cerimônia, foi abordado pelo então chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) de Bolsonaro, o general Augusto Heleno, que o teria cobrado a aderir à minuta do golpe e às medidas que se seguiriam, todas com o objetivo de barrar a posse de Lula e instaurar um estado de exceção. 

Instrumentos como a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que atribui amplo poder de polícia às forças armadas, e o Estado de Defesa, que permite a interdição dos outros poderes da República, foram aventados por Bolsonaro e seus asseclas. Os depoimentos dos ex-comandantes da Aeronáutica e do Exército corroboram essa versão e colocam na cena, nominalmente, personagens que apoiavam a tentativa de golpe e tentaram ajudar Bolsonaro a colocar em prática seus planos de soldado cabeça-de-papel.

Além de Heleno, o então ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, o ex-ministro da Justiça, Ânderson Torres, o ex-advogado geral da União, Bruno Bianco, e o general Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil, são citados como apoiadores diretos e articuladores da tentativa de golpe. Em diferentes graus de atuação, todos pressionaram os que se opunham à aventura.

Desfaçatez

Nogueira, assim como Heleno e Braga Netto, usaram suas patentes e seus cargos políticos para ameaçar demais comandantes que se opusessem ao golpe. A pressão se deu de forma direta, durante reuniões, e por intermédio de ações nas redes sociais, fomentadas por eles, para expor, constranger e colocar em risco figuras como Baptista Jr, chamado de “melancia” (verde por fora, vermelho por dentro) e “traidor” por legiões de internautas movidos pela sanha golpista.

Um dos elementos da trama foi a insistência do ex-presidente na tese de que as urnas eletrônicas não eram confiáveis, suscetíveis a fraudes. Não havia materialidade na suspeita: testes das urnas, feitos inclusive sob supervisão de representantes das Forças Armadas, resultaram em relatórios que atestavam sua eficácia e solidez. Mesmo o Instituto Voto Legal, contratado pelo PL de Valdemar Costa Neto para tentar conspurcar o sistema, acabou por frustrar os golpistas. Baseados nesses resultados, os ex-comandantes Baptista Jr e Freire Gomes, em encontros com Bolsonaro, defenderam a lisura das eleições. 

Chama a atenção a desenvoltura demonstrada pelo comando do golpe. Seus integrantes falavam de forma explícita, aparentemente sem considerar a hipótese de que seus atos pudessem, no futuro próximo, ser conhecidos do público. Arrogância, por acreditarem que Lula e seus eleitores pudessem ser roubados com facilidade, é uma explicação possível para tal atitude.

Os golpistas certamente estavam convictos de o rompimento da ordem democrática provocaria comoção popular, a partir dos acampamentos dos autointitulados patriotas espalhados pelo país, caos e – bem ao estilo e indisfarçável prazer sádico de Bolsonaro – violência generalizada. Redentores, entrariam em campo (as quatro linhas?) para resgatar o Brasil.

De todo o modo, Bolsonaro, paraquedista em seus primeiros anos de Exército, antes de ser desligado por tramar ataques a bomba em equipamentos públicos no Rio de Janeiro, na década de 1990, novamente deu mostras de seu perfil Brancaleone, ridículo, mas perigoso, personagem da comédia dirigida pelo cineasta Mario Monicelli, em 1966.

Cerco e Prisão

Mais do que nunca, a partir das recentes revelações, Bolsonaro está muito próximo da prisão. Inelegível, é candidato à cela. Na última sexta-feira, o ex-presidente, sem os cercadinhos de que dispunha quando no poder, recorreu ao portal Metrópoles, para afirmar que não cometeu crime ao estudar um plano de golpe e tentar obter apoio armado para colocá-lo em execução.

Tentando preservar os fios de liberdade de que dispõe, o ex-presidente, tão pronto a clamar por cadeia para qualquer pessoa que não seja seu fã, correu para a Região dos Lagos, no Rio, para encontrar legiões de apoiadores. Em Maricá, cidade governada pelo PT desde 2009, foi recebido com entusiasmo por um grupo vestido de verde-amarelo No município, Bolsonaro teve mais votos que Lula na eleição de 2022. O ex-prefeito da cidade e atual deputado federal, Washington Quaquá (PT), minimizou o ato político: “700 pessoas”, disse, nas redes sociais.

A prisão de Bolsonaro, para a qual existem evidências sólidas e processo “maduro”, na opinião do advogado criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, vai continuar exigindo perícia política, mesmo que seja, em grande parte, uma operação policial e jurídica. Kakay, em entrevista à CartaCapital, afirmou ser necessário que o rito legal, incluindo direito à defesa, seja seguido. 

Kakay não o disse, mas existe o risco de que a constante postura de vítima adotada por Bolsonaro – justo ele, que tanto ridicularizou o que chama “vitimização” de grupos vulneráveis – e suas cândidas declarações de inocência possam mobilizar adeptos renitentes. Muito provavelmente, se ocorrer, isso não terá força para reverter o processo, mas pode embaralhar um pouco mais o cenário político e as disputas municipais deste ano. O figurino de mártir da extrema-direita lhe cairia bem.

Mídia

Por enquanto, a condução do processo vem se dando de forma diferente do que a turma da Lava-Jato, Sérgio Moro à frente, ofereceu como espetáculo midiático na perseguição a Lula.

A decisão de Alexandre de Moraes, ao abrir os termos dos depoimentos, conferiu maior igualdade de armas à cobertura jornalística. Em lugar de vazar informações selecionadas a dedo para veículos parceiros, como Moro fazia, por exemplo, com a hoje anêmica revista Veja, Moraes inocula dose de transparência ao processo, o que dá ao magistrado e ao próprio STF, ao mesmo tempo, a possibilidade de avaliar a temperatura da opinião pública.

Restam as redes sociais, até o momento à margem de qualquer controle eficaz, a despeito dos esforços feitos pelo Judiciário na esfera eleitoral. Usadas à exaustão como ferramenta de política e (falta) de gestão pelo então presidente Bolsonaro, a máquina de desinformação foi arma também às vésperas do golpe pretendido pelos conspiradores, cujos expoentes preferiram se calar diante da Polícia Federal.

Enquanto isso, dormita no Congresso Nacional o projeto de lei 2630/2020, que pretende regular plataformas digitais no Brasil, a exemplo do que já ocorre na Europa, cujas experiências servem de base aos debates que o relator Orlando Silva (PCdoB-SP), deputado federal, tem mantido em busca da aprovação do PL. 

Uma das propostas do projeto é instituir um monitoramento permanente de riscos sistêmicos à democracia. Esse instrumento seria coordenado por representantes de diferentes grupos, incluindo as grandes plataformas. “Mas é preciso pressão popular para votarmos e aprovarmos o projeto”, tem insistido o deputado.